25.2.14

Em seara alheia



Há um rumor nesta distância,
um ardil com que tinjo as palavras
em armadilhas que vibram 
mas não protegem. Há um porto,
deserto e húmido, como todos os portos
quando não estás, e há também um mapa,
um antiquíssimo mapa sem litorais
nem margens, onde eu refaço
esta insuportável sede de ti
comigo a desenhar ilhas no outro lado
do tempo. Há ainda - ou parece
haver - uma ponte... uma passagem
ameaçada - e tudo isto, tudo, porque
há um rumor nesta distância.

Victor Oliveira Mateus
In: Gente dois Reinos. Fafe: Labirinto, 2013, p. 25

19.2.14

Alheia à engrenagem

Ana Pires


Exponho-me na versão insensata de qualquer episódio.
Misturo as datas dos factos primordiais,
dos ritos de passagem,
do solstício, da lua nova.
Morro e nasço.
Desdobro atitudes,
evocando arautos de estranhas profecias,
alheia à engrenagem
montada por artífices de paradoxos e de teias. 

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1977

13.2.14

Desejo

Nina Leen

Trago-te frutos silvestres para provar contigo 
nossos lábios frutados e frescos. 
Temos sede de nós. 
Nossas bocas estremecem levemente 
por sabermos que em plena noite a lua 
será de chamas nas curvas do corpo. 
Tu dizes o meu nome. Eu digo o teu nome. 
Não há mais ninguém na terra nesta hora urgente da paixão.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

6.2.14

Labirinto



Eram duas as sombras nas paredes da casa. 
Espantadas com a ferocidade do olhar 
rasgavam com vozes indecifráveis 
os nomes que amaram. 
Como se nada soubessem 
das palavras propícias à invenção do prazer. 
Como se tivessem envelhecido 
prisioneiros de um labirinto sem recuo.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013