24.6.17

Em tempos de oração

Ana Pires

Um dia nos pátios das casas
hão-de acender-se fogueiras
para atrair a chuva
como uma crendice de tempos remotos.
Seremos, passo a passo,
errantes de longínquas viagens
ou peregrinos perseguidos 
em tempos de oração.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

18.6.17

Mulher com camisola preta

Amedeo Modigliani

Já não possuo a voz de outrora,
quando repartir o pão
era um gesto maternal
e os filhos me pediam os olhos
para poderem adormecer.

Com os pulsos abertos
a qualquer aflição
manejo, como sei,
o sulco invisível da luz.

E sei-me rodeada por um rio
gemido até à secura.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017

12.6.17

Em seara alheia



Poema tonto

Tu falaste e falaste do tamanho das coisas
sem adjectivos nem medidas, e eu, desastrada,
acabei por te contar que sou pequena. Depois
veio a chuva sobre ti, e eu corri à janela.
Não te vi e estranhei, até, a secura do céu
e da terra. Senti-me tonta de tanto ruído
no peito.

O barulho que pode fazer a chuva
Mesmo quando chove longe.

Virgínia do Carmo
In: Poemas simples para corações inteiros. Desenhos de Bernardo C. - Braga: Poética, 2017, p. 37

5.6.17

Lunia


Amedeo Modigliani


Sonhei toda a noite com barcos.

Apetece-me deixar as roupas
tombadas na cadeira
e ir procurar os verões da infância,
com navegações alvoroçadas.

Apetece-me circum-navegar
a mais remota distância
na infinidade do universo.

Apetece-me ser gémea de aves
matinais a desvendar alvoradas,

para que as minhas mãos
não comecem a gretar
quando um barco se afasta dos meus olhos.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017