30.12.09

A passagem do tempo

Manuel Alvarez Bravo


Dantes a passagem do tempo deixava-se adivinhar
no contorno imperfeito das pedras que pisamos.
Os antigos conheciam os segredos dos caminhos
e dos muros e contavam velhas estórias
de sustos e de choro.
Agora, como marionetas cujo fio mágico
irrompe, giratório, à boca da cena,
assim a dança dos dias no calendário.
Com sinais de urgência.
Com movimentos apressados onde o caos se instala.
Com vozes que são águas tão fundas sob o peito
que perturbam o imenso silêncio das estrelas.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

18.12.09

NATAL

Michelangelo


NATAL

Leio o teu nome
Na página da noite:
Menino Deus...
E fico a meditar
No milagre dobrado
De ser Deus e menino.
Em Deus não acredito.
Mas de ti como posso duvidar?
Todos os dias nascem
Meninos pobres em currais de gado.
Crianças que são ânsias alargadas
De horizontes pequenos.
Humanas alvoradas...
A divindade é o menos.

Miguel Torga
In: Diário X, 24 Dez. 1966


Que venham os anjos que nos guardam refazer em nossas mãos um presépio de amor.

Que celebrem em nosso olhar o desejo da luz, a promessa da paz, a certeza do bem-estar.

Um Bom Natal e um Novo Ano Melhor !

12.12.09

Memórias de Dulcineia XVII

Claire Rydell


Porque os sentidos se furtam
a qualquer ausência sei
que nunca me aconteceu
a tua morte.
Teus gestos recordo.
Teu nome confundo
com os sonhos.
Em teu exílio
construo meus caminhos.
Diz-me o que perturbou teu olhar,
o que te devorou a inocência
do sorriso, o que esvaziou
tuas mãos de tanta sedução.
Diz-me que moinho de vento
te moldou, no corpo,
essa imprevista forma de loucura.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

5.12.09

Em seara alheia


É DAS FONTES QUE FALO!

Falo das casas de rosto contente virado para o mar,
da procura apaixonada das conchas raras
abandonadas na vazante,
do mistério nunca desvendado da canção dos búzios,
da postura majestática dos cactos com flores
vermelhas sobre as dunas,
falo da robusta madureza do teu corpo
aberto como um suspiro
liberto de cansaço no tempo certo!...
É das fontes que falo,
insubstituíveis, teimosas fontes
escondidas, esquecidas, não lembradas,
mas avidamente luminosas,
sequiosas nos olhos que procuram, se procuram,
no enleio confusamente inevitável
de quem caiu de borco das estrelas nos labirintos
e becos da cidade,
onde as crianças sabem
não haver fronteiras claras entre a vida e a morte,
entre o riso e a tristeza,
e acariciam silenciosamente, com mãos de jade,
as lágrimas que parecem tombar do céu,
mas que brotam violentamente da terra!...

Eduardo Aleixo
In: As palavras são de água. Lisboa: Chiado Editora, 2009

28.11.09

As flores tardias de maio


Obrigada, Maria Clarinda


Aqui, olhando as pessoas ao acaso,
vêm-me à lembrança aqueles dias
em que os nossos olhos se ajustavam
e tu lias, em voz alta, os autores
da nossa preferência.
Recordo isto, como um tempo
em que os pássaros vinham,
em grandes círculos, sobrevoar
a imprevisível alegria,
tecida por nossas mãos,
para iluminar, sobre a mesa,
as flores tardias de maio.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

22.11.09

Nada sei

Claude Simon
Nada sei da sedução da morte nos olhos
dos pássaros atingidos pelo trilho dos incêndios
no interior das searas.
Não sei que nome dar ao momento
exacto em que a luz pode ferir
a obscuridade da lua nova
dispersando as aves nocturnas.
Ignoro quais as palavras propícias
à vertigem das nuvens, em novembro,
quando as águas dos temporais
alagam os meus olhos.



Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009


Agradeço, sensibilizada, a todas as amigas e amigos que estiveram na apresentação do meu livro e a todos os que desejaram estar e não puderam. Bem hajam!

7.11.09

Dois Convites

Para os que moram na Figueira da Foz, ou por perto:

Dia 12 de Novembro de 2009, às 18 horas, na Biblioteca Pública Municipal




Para os que moram em Lisboa, ou por perto:


Dia 21 de Novembro de 2009 pelas 17.30 na Livraria Trama
Rua São Filipe Nery, 25 B, Lisboa




Teria imenso gosto em que estivessem presentes no lançamento do meu novo livro de poesia:
O silêncio: lugar habitado.

1.11.09

Em sinal de luto

Ansel Adams

Conto, pelos dedos, o tempo de entardecer
cansaços. Um negativo de lembranças,
compulsivamente recortadas no coração,
transforma a brisa em rostos familiares.
Crava-se-me, na pele, um sangue-frio
de mortes solitárias e estremece-me
o corpo em sinal de luto. A noite cheira
a despojos de velhos monólogos.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

24.10.09

Todos os sinais do rosto

Dorothea Lange
Pelo vértice dos abismos
posso espreitar o fulgor inventado
da sombra que me precede.
Todos os sinais do rosto
se tornam tão palpáveis
como a paisagem dos dias,
em que a luz, trémula,
junto à fronte me deixou,
no fundo do olhar, para sempre,
uma ilha cercada por sombras,
tão cheias de orfandade,
que só um milagre me salvou
de uma solidão definitiva.

Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

17.10.09

Outono: lugar frágil

Edouard Boubat


Acendo as mãos para aquecer o olhar
de quem atravessa apressadamente o outono.
Um morno ruído desdobra o voo quebrado
dos plátanos obstruindo um caminho
desenhado a carvão por onde passeio
à beira dos acontecimentos e das sílabas,
alheia a tudo, como se pudesse passar
o resto da vida à sombra do pólen das palavras
e adormecer no confluir da transparência
e da luz, neste outono: lugar frágil.


Graça PiresDe Outono: lugar frágil, 1993

7.10.09

Em seara alheia



Fábula da Fábula

Era uma vez
Uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora,
Que, em verso e prosa,
Toda a gente
Inteligente
Prudente
E sabedora
Repetia
Aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base duns insectos
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.
E, realmente…
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demónio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.

Miguel Torga
In: Diário VIII, 1956

1.10.09

Por meio do fascínio



Os deuses reuniam-se de noite.
Debruçavam-se sobre os bosques
para sacralizar as árvores,
debaixo das quais os tocadores de lira
encantavam as serpentes
e os amantes justapunham os corpos.
Zeus exibia, então, a sua força mágica
aniquilando os homens por meio do fascínio.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

24.9.09

Onde o outono aquece

Ana Pires


Aqui, na fenda da rotina onde o outono aquece
vou desenhar a sede, lentamente.
Já não falo de nós, peregrinos

das rotas que inventámos.
Por dentro das metáforas violo,

apenas, os limites do sossego e desfaço
todos os nós do medo no fulgor livre do verbo.
É morno o gesto com que percorro

os momentos inquietantes do quotidiano.
Imagens e sons são, quase sempre,

o fundo falso onde, de forma ambígua,
me escondo para representar todos os rituais,
sagrados e profanos, do dia a dia.
Aquém de mim acendem-se todos os mares

e, na voz dos marinheiros, pergunto ao sol
se pode ser eterna a sombra de um barco.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994

18.9.09

Um silêncio obsessivo

Marthe


Há um deserto adiado no interior
das papoilas desdobradas
sobre o movimento dos dedos.
Aqui é a passagem
para um silêncio obsessivo.

Graça Pires
De Poemas, 1990

10.9.09

Memórias de Dulcineia XVI

António Quadros

Como calar a incoerente voz
do pensamento
para encontrar as palavras
com que me invento?
Demasiado cedo
me soube irmã da noite
porque a luz, indecisa,
perto do rosto me parecia
um pressentimento sombrio.
Com o tempo as emoções têm nome?


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

3.9.09

Em seara alheia



A prontidão das sombras resume
Um simples corpo e resvala sinuosa.
Sei que recordo tudo em certos momentos.

Recordo-te até como se te chamasse,
Como se corresse através do caminho
Que vais preparando junto aos precipícios.

Mas a memória revela o que não sei,
Desfaz sequências de nomes até ti.

Repito a violência e seguro uma pedra
Com as mãos - tal como as tuas - já perdidas.

Repito toda a fragilidade que o teu peso insinua
E derramo a voz ao limite - ossos e carne
Que nos atiram ao chão com o afecto da dor.


Rui Almeida aqui
In: Lábio Cortado. Torres Vedras: Livrododia, 2009
Prémio Manuel Alegre 2008

27.8.09

Agosto

D'Ângelo

Recorta-se um agosto lento
na mutação da página em branco
onde conjugo o verbo amar.
A inquietude enrosca-se no texto
e contamina as frases sem nexo.
Redijo os contornos de um abraço.
Soletro um nome.
Um vento morno rasga, na minha boca,
um alfabeto alegórico com que revelo o futuro.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

20.8.09

Itinerário do silêncio

Ana Pires

À espera de um momento de luz
retorno, sem hesitar, ao itinerário
secreto do silêncio e cultivo a solidão

multiplicando as sombras.
Peregrina de outra luas,
resgato a música
que me restou da infância,
como um sobressalto,
ou uma canção de embalar,
ou água fresca a ferir-me a boca,
de tanta sede.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

13.8.09

Fuga

Harry Callahan

Pinto na janela a tormenta
de um mar imaginado.
De costas para a lua
preparo a minha fuga.
Enrolo à volta do corpo
a primeira onda:
a derradeira âncora
para roçar na boca
o lamento verde das marés.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

5.8.09

Reconheço-me

Dorothea Lange


Reconheço-me em todas as paisagens
anunciadas pelos profetas, ou pelos mágicos,
fascinada com o impulso que me faz arriscar
uma paixão sem aviso prévio.
Plagio sem restrições
a vida de heróis fantasiosos.
Procuro em todas as definições
acerca da vida e da morte
a síntese perfeita
e transcrevo-a nas cordas vocais
para a citar a propósito das coisas que acontecem.
Ninguém me diga o caminho onde se equivalem
os dias e as noites de um roteiro de verão.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

28.7.09

Em seara alheia



a primeira vez que tive vinte anos
esperavas por mim naquele café com nome
de porto grego que faz a Grécia
no meio do bairro alto dizias muitas vezes
mexendo o café que sempre bebias sem açúcar


depois descemos até ao rio e prometeste
um barco por cada dia em que
os meus vinte anos voltassem
às tuas mãos naquele lugar


nessa altura envelheci muito depressa
ao ritmo das cartas em que prometia odiar quem

junto de mim dissesse
-como era moda-
que os vinte anos tinham sido o melhor tempo
das nossas vidas


e o meu coração era então tão grande
que todos os que passavam

se serviam dele

Alice Vieira
In: O que dói às aves. Lisboa: Caminho, 2009

21.7.09

Um estranho signo

Carlos Gutierrez

Pelo lado mais intranquilo da luz,
há vozes alheias
que me inquietam as mãos.
Um estranho signo
risca-me no ventre
a feminina morte
de todas as infâncias
em que, sílaba a sílaba,
me procurei na mais espessa
das noites, sem medo de emergir
de qualquer sombra.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

14.7.09

Não sei por que motivo

Walker Evans

Às vezes
não sei por que motivo
afogo o olhar
em trágicos silêncios.
Para encontrar a luz
me bastava enfrentar
a noite, porque possuo
nos olhos o apelo
errante das sombras.
Pequenas traições
tatuadas na pele
são apenas pretextos
para disfarçar os medos.
Um remorso
germinando na lembrança
devolve-me o temor
de múltiplas solidões.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

3.7.09

A mais clara palavra

Manuel Fazenda Lourenço


A mais clara palavra lança a sua sombra
sobre os muros caiados de fresco.
O reflexo da cal incide em nossos olhos:
o mesmo aceno da luz, o mesmo brilho,
o mesmo pressentimento de júbilo.
Sobre o peito fatigado da terra
refazemos a casa.
Dói-nos, no olhar, a intensa floração
das árvores e podemos sentir,
no clamor das antigas oliveiras,
o vento que nos trouxe.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

27.6.09

Perto do Tejo



Mais perto do Tejo, há palavras
que tocam o sossego dos lábios
para dizer o sul da mágoa,
no voo convergente das gaivotas,
quando os barcos se abrem
ao argumento ondulado das marés.

Graça Pires
De O Tejo e a margem sul na poesia portuguesa: antologia, 1993

21.6.09

Em seara alheia


Anjo

Acreditei num anjo que vivia
no parapeito granítico do quarto.
Não tinha altura, a única medida
eram as asas abertas
como as das borboletas sobre
o milho. Uma asa quebrou-se
no entanto continuava asa
às vezes mais forte do que a outra.
Fascinava-me o anjo da janela.
No alvoroço dos meus sete anos
contei-lhe um namoro de meninos
e amoras. O anjo caiu.

Maria Augusta Silva
In: Dança de Matisse. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2004

14.6.09

Memórias de Dulcineia XV


Todos me falam de ti
com palavras ambíguas.
Fui, eu sei, uma suspeita
de luz em teu olhar.
Virados a levante,
os meus cabelos
eram labaredas em teus dedos.
Na hora do combate
me nomeavas,
como se rezasses.
Pinto-a na minha imaginação
como a desejo, tanto na beleza
como na nobreza
, disseste.
E vejo a minha expressão
na cor dos teus olhos.
Tão cúmplice, eu,
de tamanho assombro.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

7.6.09

Não abdico da luz

A janela: fotografia de Gisela Ramos Rosa



Por detrás do olhar, só a escultura das palavras,
no hálito profano das manhãs, me perturba.
Não abdico da luz, mesmo quando, de olhos
no chão, invoco a humidade das sombras.
Um relógio de sol, na ponta dos dedos,
calcula o tempo de cada gesto,
com que abri mão dos sonhos da infância.

Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

31.5.09

Outras crianças

Claude Simon

Começa na rua o seu desamparado destino.
Têm, na certidão de idade,
os anos mais convenientes,
para quem as inicia na droga,
na oficina, na prostituição.
Sem histórias de encantar na hora do sono,
brincam ao acaso, indefesas,
orfãs que são de afectos verdadeiros.
Lutam pela sobrevivência
com a mesma habilidade com que manejam
o canivete, a bola, a rixa, o berlinde.
Cómodo se torna acreditar
que, as suas vozes infantis,
fazem delas crianças iguais às outras.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

25.5.09

Em seara alheia


Máscaras


ah! o imenso da possibilidade.

quantas rotas em tormentas?
quantas máscaras desejadas?

sucumbes à pressão dos momentos.

nada se transfigura nos espelhos,
e todos os dias és
mais do que a soma das tuas partes.

às vezes, os mares da realidade assim obrigam.

é nessas águas que também somos humanos.


Vicente Ferreira da Silva aqui

In: Interlúdios de certeza. Porto: Temas Originais, 2009

18.5.09

A múltipla sombra



Hoje soletro, no meu nome,
as sombras do passado.
Cito-me imitando um pássaro de luz
bebendo a própria sombra
para não morrer de cansaço.
À margem das palavras,
um fogo hereditário
ungiu-me a fronte
e pressagiou o rastilho
de um silêncio a muitas vozes:
a múltipla sombra no interior da boca.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

11.5.09

Memórias de Dulcineia XIV

Menez
Na penumbra me perco.
Surpreendida. Impaciente.
Como se uma reprimida dança
movesse o mais insólito enredo
nos meus passos.
Deito-me de bruços para cheirar,
na terra, o hálito do sonho que persigo
e o corpo cobre-se-me de ervas bravas.
Assim permaneço
até que uma lua de sangue me visite.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

4.5.09

Em seara alheia

QUE DIZER

Que dizer do tempo
hesitante de um poema
ou da forma magoada
de o escrever,
que dizer da voz
decidida do Poeta
ou do modo alterado
de o falar
e de o cantar,
que dizer de mim
e de ti
na noite de todos os poemas
dentro do tempo
dito de nós.

Maria Paula Raposo
aqui
In: Nevou este Verão. Lisboa: Apenas Livros, 2009

28.4.09

Desempregados

Dorothea Lange

Sabem de cor a raiva extenuada
com que se repete: trabalho, pão,
trabalho, pão, trabalho, pão
.
Nos seus olhos já não há, senão, um país
onde se nasce e morre, como quem cumpre
o exílio de uma pátria longínqua;
como quem conhece a orfandade do mundo;
como quem tropeça nas próprias cicatrizes.
Os seus pulsos sangrando de tanto desespero.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

20.4.09

LEMBRAR ABRIL







AS PALAVRAS DO MEU CANTO


Palavras que não morrem. Nunca morrem
se um homem as disser sempre de frente.
Palavras que não morrem. Nunca morrem
porque são a razão de quem as sente.

Palavras. Todas elas do meu povo.
Amigas. Companheiras. Namoradas.
E são o canto antigo. O canto novo
de quem não as quer ver amordaçadas.

Palavras que são vento. E tempestade.
Palavras que são sol. E são abrigo.
Verdade. Amor. Poema. Liberdade.
E a palavra maior: palavra Amigo.

Palavras que são arcos. E são setas.
Com elas se defende uma canção.
As palavras são as armas que os poetas
devem fazer passar de mão em mão.
[ … ]

Joaquim Pessoa
In: Amor combate. Lisboa: Moraes, 1977

13.4.09

Enredos de fim de tarde

Manuel Fazenda Lourenço
À revelia de pretéritas lembranças,
um bafo de terra molhada
devolve-me enredos de fins de tarde
que me sugerem os panos coloridos
com que, em criança, fazia as saias das bonecas.
O verso e o reverso de um concêntrico imaginário.
A atmosfera impregnada do meu fascínio de viver.
E pego na fala de Zaratustra para perguntar:
Que temos de comum com o botão de rosa
que verga sob o peso de uma gota de orvalho?
De que matéria somos feitos
que nos torna comovidos e inocentes
perante a promessa da ternura?
Sei o difícil jogo de viver.
Os meus desejos são como as areias
que o vento levanta sem levar para longe.
Nenhuma linguagem explica o devir das paixões.


Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

6.4.09

Na proa dos barcos


Na proa dos barcos reconhecemos
os ventos tropicais.
Um cais torna-nos marinheiros
de um destino sem remorsos.
Ninguém põe em causa a perfeição
do voo das gaivotas nos corpos dos meninos
que rebolam, pela areia, a inocência do olhar.
Há uma rota, plural de outras rotas,
que pressente naufrágios a poente dos afectos.
Sal que vicia os lábios e magoa
como um punhal de sede.
Braço de água-doce
comprometido com um mar inacessível.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

30.3.09

Em seara alheia


O passado dói como a dureza do mundo
João Rui de Sousa
Tenho saudades da tua voz,
desse rendilhado de sílabas
a desaguar lento no alvoroço
da tarde. Tenho saudades
da tua boca, onde eu, - náufrago
de antigas visões - todas
as noites ouvia a límpida melopeia
da ilha. Tenho saudades
das tuas mãos, sem convicções
fundeadas nas mais luminosas
águas. Tenho saudades
do ritual dos peixes, do rumor
inconsolado da brisa a soar
mansa no abandono dos búzios,
do emaranhado das algas
a envolver-nos a prontidão
dos passos. Tenho saudades
de mim nesses tempos,
quando não tinha saudades.

Victor Oliveira Mateus
aqui
In: A irresistível voz de Ionatos. Fafe: Labirinto, 2009

23.3.09

Houve noites

Alvarez Bravo

Houve noites em que sonhei
que o sol incendiava as pedras
que eu pisava.
Ou eram os meus pés
que ateavam o fogo?
À espera que as lembranças
me tranquilizem
cubro, com o véu do tempo,
o meu verdadeiro rosto.
Desfaço a bainha
dos panos que me vestem
com a farpa desta sede lenta
que se oculta na terra
sem retorno.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

16.3.09

No ângulo da escrita

Magritte


Contadas pelos dedos, as sílabas
parecem irrelevantes no poema.
Não fora a insuspeitada orgia

com que as letras se misturam
e o sentimento seria, somente, um polissílabo
mudo, imóvel, nado e morto no mesmo som.
Encosto as mãos à grafia de um verso
e enceno, ao redor dele, um calado aviso.
Sem rumo, ouço o meu vulto crescer
em direcção a um sobressalto masculino ou solar.
Um cheiro de relva aparada impõe um círculo
de recordações no ângulo da escrita.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

8.3.09

Mulheres

Gérard Castello Lopes

Ao som de canções de amiga,
revêem a geografia dos sonhos
na madeixa verde, que escorre
pelos seus cabelos, quando,
nem tudo é de pedra,
no exílio dos olhos.
Às vezes tudo o que têm,
está na memória
de um impossível discurso,
ou na visão alienada das paredes,
reflectindo pensamentos e esperanças.
São o culto onde o desespero
se desdobra em asas,
metamorfose de anjos negros,
criando clareiras nocturnas
para que a luz lhes devolva

o regozijo íntimo da vida.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

2.3.09

Em seara alheia


Na esquina da tarde pintei
a barraca da feira dos teus olhos,

depois ali fiquei, feliz,
no gosto da obra consumada…

Ah, pudesse eu prender-te a limpidez que trazes
em delicados fios de ráfia e prata fina!
Pudesse eu lustrar-te o corpo e ferir o ar
com entusiásticos odores de limonete e rosas bravas!
Pudesse eu tecer-te essa terrível solidão
com êxtases e horizontes que só para ti inventaria!

Pudesse em tudo ousar para que fosses
arco dos teus olhos
que encostado a fontes múltiplas
ansiasse que eu pudesse.

Victor Oliveira Mateus
aqui
In: Nas águas a luz suspensa. Lisboa: Minerva, 1998

23.2.09

Memórias de Dulcineia XIII

Menez

Sem medo do perfil
em que me invento
procuro os ângulos
menos sombrios
do passado.
Viro os gestos do avesso.
Deturpo conceitos e preconceitos.
Esqueço os comportamentos comuns.
Imagino-me num castelo longínquo,
cativa e princesa.
Não quero adiar o destino
de me rever nos sonhos
que te chamaram de tão longe.
Eu, aqui, morrendo aos poucos,
sitiada do teu nome.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

17.2.09

Perto do meu corpo

D'Angelo

Conheço um rio sem destino,
confluência de mágoas e de sonhos,
onde os barcos navegam para o sul.

Perto do meu corpo nada é interdito,
a não ser um súbito verão
prolongado nas franjas da memória.

Amanhece na espessura dos desejos,
como se a madrugada descrevesse
a violência, em rotação azul,
ou crescessem papoilas nos olhos de quem ama.


Graça Pires
De Poemas, 1990

13.2.09

Para atravessar a noite

David Gray
Percorro, passo a passo,
os sulcos dos migradores
de sonhos.
Reaprendo o ritual
dos presságios
para atravessar a noite,
deslumbrada e breve.
Posso, assim, iludir os gestos
mais suspeitos e escutar
o silêncio e as palavras
mutuamente se inquirindo.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

9.2.09

A primeira palavra

André Durand
Sob o domínio de Minos,
habitei o fortificado castelo de Knossos,
onde as mulheres alternavam, em si próprias,
as múltiplas formas dos deuses
e honravam, com o corpo,
o seu compromisso com o cosmos.
Hoje sei que nunca se repetirá a intacta perfeição
da primeira palavra com que nomeei a vida.

Graça Pires
De Labirintos, 1997

6.2.09

Em seara alheia



NATUREZA QUASE


Eram mulheres à volta duma mesa.
Teciam conversas com linhas da voz.
Os olhos desviavam insectos verdes
a zumbirem memórias de outras mesas.
Deitavam cartas a convocar futuros.
No fruteiro, a natureza quase morta.
No retrato tinham pupilas vermelhas -
Como as feras no escuro.

Licínia Quitério
aqui

In: De pé sobre o silêncio. 2008

2.2.09

Nocturno

Magritte

À noite vou por aí,
ociosamente.
Percorro um ritual lilás
feito de violetas de pedra
e traço cada pausa
no retorno da lua inicial.
Aqui a memória é lenta
como as angústias.
Muitas vezes vejo árvores
com frutos azuis,
ou animais em nudez perfeita
respirando o vento.
A escuridão é o subterfúgio
inesperado do coração
quando o olhar aquece
e o orvalho é de cetim.
Há máscaras de búzios e limos
na cara de quem passa.
Nas suas vozes ouço o itinerário
das manhãs siderais
e nasce nos meus passos
o rumo da via láctea.
Ninguém me conhece.
Venho do arco-íris
e trago nos dedos
o ângulo transparente da noite.

Graça Pires
De Poemas, 1990