27.6.09

Perto do Tejo



Mais perto do Tejo, há palavras
que tocam o sossego dos lábios
para dizer o sul da mágoa,
no voo convergente das gaivotas,
quando os barcos se abrem
ao argumento ondulado das marés.

Graça Pires
De O Tejo e a margem sul na poesia portuguesa: antologia, 1993

21.6.09

Em seara alheia


Anjo

Acreditei num anjo que vivia
no parapeito granítico do quarto.
Não tinha altura, a única medida
eram as asas abertas
como as das borboletas sobre
o milho. Uma asa quebrou-se
no entanto continuava asa
às vezes mais forte do que a outra.
Fascinava-me o anjo da janela.
No alvoroço dos meus sete anos
contei-lhe um namoro de meninos
e amoras. O anjo caiu.

Maria Augusta Silva
In: Dança de Matisse. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2004

14.6.09

Memórias de Dulcineia XV


Todos me falam de ti
com palavras ambíguas.
Fui, eu sei, uma suspeita
de luz em teu olhar.
Virados a levante,
os meus cabelos
eram labaredas em teus dedos.
Na hora do combate
me nomeavas,
como se rezasses.
Pinto-a na minha imaginação
como a desejo, tanto na beleza
como na nobreza
, disseste.
E vejo a minha expressão
na cor dos teus olhos.
Tão cúmplice, eu,
de tamanho assombro.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

7.6.09

Não abdico da luz

A janela: fotografia de Gisela Ramos Rosa



Por detrás do olhar, só a escultura das palavras,
no hálito profano das manhãs, me perturba.
Não abdico da luz, mesmo quando, de olhos
no chão, invoco a humidade das sombras.
Um relógio de sol, na ponta dos dedos,
calcula o tempo de cada gesto,
com que abri mão dos sonhos da infância.

Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005