A fascinação pela poesia tem sido, até hoje, uma das constantes da situação humana. Seria, contudo, um erro supor por detrás dessa fascinação um sentido e uma significação sem ambiguidade. O amor pela poesia, como todo o amor, é a história dum equívoco. Para a maioria dos homens o convívio com a poesia é a forma simples de ter ao alcance das mãos um mundo cómodo, mais tranquilo que o mundo de todos os dias, ou então a maneira de se alienarem num universo brilhante e raro, equivalente do sonho e do desejo. Pérola de imagens segregada pelo entusiasmo, o terror ou a esperança, a poesia oferece a cada homem o céu e o inferno portáteis de que precisam para iludir a necessidade de buscar no inferno real o céu possível. O amor que os homens lhe manifestam é esse amor aos céus ou infernos particulares, refinamento de um egoísmo inalterável. Adorno ou cócega da alma a poesia suscita em todos os homens, nem que seja uma só vez na vida, um começo de metamorfose semelhante à do autêntico amor, mas é raro que esse instante seja outra coisa do que a promoção de um último egoísmo. É mais a exaltação do mais radical dos nossos desejos que a sua destruição, a morte do «eu» e a ressurreição no «outro» de todos os amores reais. Amando na poesia o pior ou o melhor do que se é, vive-se a ilusão de um amor que não é senão o confortável amor de nós. É desta espécie o entusiasmo e a fascinação que a poesia exerce sobre o comum dos homens, quer dizer sobre todos os homens, pois ninguém pode supor-se permanentemente ao abrigo de ser como o comum dos homens [...].
Eduardo Lourenço
In Tempo e Poesia. Lisboa, Relógio d'Água 1987