29.6.10

Desejo

Magritte

Sei o som dos passos
com que regressas a casa.
No quarto virado a norte,
a prevenir-nos de todos os invernos,
aguardo que prolongues em mim
a tua sombra intacta.
De frutos doces me enfeito.
Uma luz quase clandestina
inunda minhas margens
e deixa-me um rio no vinco da cintura.
O teu desejo terrivelmente puro!


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

17.6.10

No meu país

António Quadros



No meu país havia marinheiros
com braços de tempestade.
Havia um cais e um sonho
ateado em cada mastro.
E havia no vento o chamamento do mar.
Havia no meu país o voo antigo dos pássaros
para adivinhar a sina dos homens.
O mistério do sangue e do parto
e o uivo das fêmeas em noites com lua
havia também no meu país.
No meu país havia a terra e a memória
e os cantares de amigo
e a pressentida eternidade das palavras.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

10.6.10

Em seara alheia

UMA VIDA

A lua lambe os limos fétidos. Aborda o cais. Espreguiça o sono. Isto era um rio.
O nosso. Reconheces aqueles dois? Há três mil anos que ali estão. Uma vida.
Ora acordam, ora adormecem. Às vezes gritam, mas ninguém os ouve.
Às vezes amam, mas o amor pesa-lhes. Da janela vejo-os passar. Buscam.

Alice Fergo
In: Quando junto às horas se ilumina um rio. Fafe: Labirinto, 2010

3.6.10

Consentidas emoções

Edward Hopper




Com flores exuberantes
em torno das ancas rememoro
incontáveis sombras no meu rosto
e traço os caminhos em que me perdi
como quem empunha no fundo
da memória a bandeira ou a espada
de consentidas emoções.
Não voltarei ao sobressalto
dos lugares marcados com sangue de fêmea
para que o instinto me não rasgue
a pele dos seios.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007