31.7.23

Em seara alheia

 


Na teia frágil dos dias 

Não deixes que a tua voz se cale 
antes de ser eco. 
Não deixes que a magia desvaneça. 
Que nada na vida se interrompa 
antes que aconteça. 
Que nenhuma luz se extinga 
enquanto os olhos a pedirem. 
Que nenhuma carícia se perca 
antes das mãos entardecerem. 
Porque tudo o que acontece 
na teia frágil dos dias 
se esgota num imprevisível instante, 
num golpe de vento 
ou no rasgão fugidio de um poema. 

Albino Santos 
In: Poliedro. Viseu: Seda Publicações, 2023. p. 71

24.7.23

Veio de água

Silena Lambertini 


                                                                 Para Victor Oliveira Mateus

Ele esquecia o desacerto do pensamento 
anterior às palavras todas que escreveu. 

Declinava o eco dos nomes 
das vozes das mortes dos sustos. 

Deixava-se perturbar pelo murmúrio 
quase calado do veio de água 
sangrando a surdina 
de um rio nascente: 
boca e fonte 
tão mútuas da vertigem 
que antecipa a sede 
justificada na raiz íntima do verbo. 

Era a anunciação de um poema: 
fogo e lágrima lâmina e mel 
espaço onde o voo começa. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p.25

17.7.23

O tempo que passa

 

Nikolay Tikhomirov


E, no entanto, muda a direcção dos ventos. 
As mãos rondam os gestos. 
A lisura das horas segue o rumo de chronos. 
Um descuido na confluência de ruas
sem retorno arde sob os pés. 
São lugares improváveis onde se chega sem guia, 
só pela ocasionalidade de tudo, só pelo cheiro, 
só pelas lajes com arestas arredondadas. 
Um laço de ferro vem ancorar no peito as marcas 
que alarmam o tempo que passa, 
registado por relógios sem ponteiros, 
a alagar de suor hábitos antigos, 
como uma cilada ou um cutelo 
fendendo os dias tão breves. 
Com minhas mãos povoadas de acenos, 
toco a face intocável das memórias. 
E escrevo. Escrevo a síntese de íntimos silêncios 
para que não se banalize a minha voz diferida. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui. 2012, p. 33

10.7.23

Em seara alheia



A carta 

Um homem escreve uma carta a uma mulher 
como se fosse um acto antigo 
O homem escolheu o mais terno papel rosa 
e sobrescrito a condizer _ com cantos violeta 
nele escreveu o nome da mulher 
e o lugar de destino 
O homem carregou de tinta azul a sua estimada 
e bela caneta que estava muda desde 
quando disse a última carta 
Escreveu a data na primeira linha 
o dia registado _ seminal 
com letras maiores escreveu no meio da página 
     Amo-te, tenho saudades 
na última linha, o homem assinou apenas 
com o seu primeiro nome 
O homem guardou a carta no sobrescrito 
que não colou _ beijou-o duas vezes 
e encostou-o à jarra onde tinha as flores 
que amanhã levaria para depositar 
no lugar inscrito a seguir ao nome da mulher 
Depois deitou-se para dormir e sonhar 
como fazia todos os anos. 

Luís Raimundo Rodrigues 
In: No espaço da minha boca. Edições Gato Cinzento, 2023, p. 92

3.7.23

O retrato da mãe


 

                                                                                                         Para o Manel


É possível que a imprecisão do retrato 
te iluda o olhar habituado 
aos pormenores da memória. 

As curvas da luz no rosto esvaecem 
a expressão que julgas ser triste 
no inacabado instante da imagem. 

Mas se observares a juventude 
estampada na pele a desafiar o tempo 
talvez seja alegria o que vislumbras. 

O choro e o riso na mesma moldura 
na mesma feição na mesma vida 
na mesma ausência. 

E a tua infância escondida no retrato. 

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 40


Para quem gostar de ouvir o poema e ver o vídeo feito pela minha filha Ana pode fazê-lo aqui:
                       
                             https://youtu.be/Ub2ud1BK_5o