24.9.18

Nos dias tranquilos

Vicki Mcmurry

Sem motivo aparente, a quietude
desliza no interior da casa.
A luz que a inunda nos dias tranquilos
tem uma inclinação tão perfeita
que até os mais inacessíveis ângulos
se sobressaltam com o próprio brilho.
É raro amanhecerem dias assim:
debruçados sobre o sol, com a inesperada
imparcialidade das sombras.
No horizonte desenha-se a demora
nocturna, na intensidade do poente
preso à maré mais recuada.
À mercê da brisa procuramos uma prece,
uma canção, um tumulto de asas
e a vertigem incontida das estrelas.


Graça Pires

In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 118


ATENÇÃO: A apresentação desta Antologia Continuum vai realizar-se no Porto, no dia 13 de Outubro, pelas 17 h., no Bar Era Uma vez, na Rua das Carmelitas, 162. Desejo que, quem estiver por perto, esteja interessado em participar. Os autores agradecem.

17.9.18

Em seara alheia


Ensaios

A sede instalou-se.

na aridez da ausência
o pó dos dias velou a memória do toque
e da pele em fogo

as tuas mãos
perderam o rumo do meu corpo

e eu
já só renasço quando me sonhas

João Carlos Esteves
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 56

10.9.18

A medida certa de um abraço

Amanda Cass


                                      Para a Cleri Aparecida Biotto Bucioli


Vieram do oceano ou do fundo do olhar
as aves com asas aniladas.
Sobrevoaram a praia deserta
e pousaram na escarpa mais alta
para avistarem a distância
que o vento apetece em suas penas.
Na linha das areias, a medida certa
de um abraço.

Graça Pires 
De Uma claridade que cega, 2015, p. 42

3.9.18

Inesperadamente jovens

Andre kohn

Já os pássaros marinhos voavam sobre os barcos
e a rebentação das ondas atingia a areia das margens,
quando as nossas mãos, tão próximas,
rondavam tempestades na concha do olhar.
Só nós adivinhávamos a inclinação das âncoras
pelo estremecimento dos mastros
e pela fulguração dos corpos inesperadamente
jovens, incendiando as águas.
Em nossos pulsos abertos às quilhas
conhecíamos os mares incertos onde os naufrágios
faziam dos teus e dos meus braços
o remo e o rumo da viagem.
Havia limos a amaciar-nos a pele.
No relevo dos ombros,
uma lâmina de sal alucinava-nos o sangue.
E a cúmplice respiração de nossas bocas
denunciava o frémito da maré-cheia.

Graça Pires 
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 120