29.11.14

Com devoção ou descrença


                                                       Para o José d'Ângelo

Passas vagarosamente sobre um areal.
A carga dos navios pesa-te nas costas.
A boca com iodo e sal
suspende a raiz de um grito.
Fatigado, ajoelhas e benzes-te
com a devoção ou a descrença
de quem pressente o desamparo
das palavras ou apenas o instante
em que há aves trémulas
voando no teu peito.

Graça Pires
De: Espaço livre com barcos, 2014

22.11.14

Em seara alheia




Não sei

Não sei dizer-te, 
se o rio corre para o mar
se a ponte encurta o caminho
se o mar está em maré vaza.



Não sei dizer-te, amor,                          
se o amor é a palavra certa                   
para te dizer, 
se o meu coração parou
ou o tempo parou para nós.                                     
A textura da tua pele
sente o arrepio 
que diz a sede                                           
da tua boca, 
o orgasmo falhado dos
sentidos,
a fome que no teu 
corpo espreita?
                                           
Não sei dizer-te
se o medo de perder-te
te fez perder-me,
se os beijos que guardei para ti
já no tempo os perdi,
se foi a saudade que nos matou
ou matámos a saudade
dentro de nós.

Não sei dizer-te
Não sei...
                                          
Otília Martel
In: Olhos de vida. Ilustrações de Catarina Lourenço. Modocromia, 2014, p. 51

16.11.14

Ainda me causa espanto a madrugada

Claude Monet

Entre mim e o mar
ainda me causa espanto a madrugada.
Sempre diferente. Sempre idêntica.
Tons de mel, de romã,
de diamante, de milho seco.
Sopro de sal, de sangue, de limos.
E, por trás das dunas,
a respiração dos amantes
sobressaltando as aves.

Graça Pires
De: Espaço livre com barcos, 2014

8.11.14

Em seara alheia


nunca fales no exílio
na pedra in-disposta
perante o olhar branco
de quem a colocou
perante o corpo

há só um lugar assumido:
paraíso seiva-geradora-de-
tempestade,
o agora tempo
o agora olhar de início,

na vida de todos nós
na vida sempre vida
que é matéria de toda
a linguagem

[mesmo que dela
se aproxime o inumano].

In: Teoria do Movimento. Ed. Autor, 2014, p. 43

2.11.14

Declínio

Jim Wehtje


Achego o corpo à terra 
para antever a cor dos lírios 
na hora derradeira. 
É o momento de aparar as arestas 
na engrenagem do declínio. 
Falta-me nas mãos a haste 
que enviesa a sombra 
até que a treva se cumpra.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013