26.1.11

Nas casas abandonadas

Ana Pires



Nas casas abandonadas, as silvas
vão tecendo as rédeas do tempo.
A terra inquieta fende o cimento
afagado, desfaz a cal das paredes,
contamina alvenarias.
Um declínio de pássaros na poeira
da tarde, desfoca as mãos
dos que morreram com as árvores.

Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

18.1.11

Em seara alheia


Partida


Quando parti ninguém apareceu à beira da pista.
Quando parti as viagens eram coisa simples e banal,
e não este desejo de procurar um sentido para
a mágoa, uma clareira para a ausência, uma fonte
- minúscula que fosse – para saciar aquilo que
se mantém ininterrupta sede. Quando parti estavam

todos atarefados a viajar, mas de outro modo –
voracidade de prestamistas, esbugalhados olhos
onde o tempo é tão transacionável, quanto um futuro
hipotecado ou uma mera jante enferrujada. Quando
parti tiveram logo o cuidado de me avisar que a poesia
nunca salvara ninguém, que a procura das raízes

(bem como o entendimento de um passado não
acontecido) era coisa tão ridícula quanto obsoleta
para o riso alvar de muitos. Quando parti a buganvília
da moradia em frente estava esplendorosa e havia
um gato a furar a rede. Quando parti uma mulher
no prédio ao lado sacudia um pequeno tapete.

Acenou-me. Sorri. Quando parti imaginei
o escárnio deles, os telefonemas duns para os outros,
as conversas. Quando parti ninguém apareceu
para se despedir, havia apenas: eu, um objectivo
incerto, o teu rosto a reflectir-se ao longe
e o sol a dar de chapa nas vidraças.

Victor Oliveira Mateus
In: Regresso. Fafe: Labirinto, 2010

12.1.11

Gosto de objectos geométricos

Manuel Fazenda Lourenço


Gosto de objectos geométricos desenhados
a compasso por mãos intransigentes.
A multiplicidade dos traços povoa
e despovoa a beleza dos lugares
que nos prendem como se fossemos árvores.
Preciso e exacto será também o momento
em que regressaremos ao silêncio
com passos de cinza.
Calados nos hão-de vigiar os deuses e os homens.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

3.1.11

Em litorais longínquos

Paul Cézanne


Em litorais longínquos
as mulheres deitam-se sobre a areia
junto à rebentação das ondas.
Com os braços em cruz
afastam as embarcações costeiras
e aguardam que a lua inteira
inicie um inesperado bailado
perto de suas bocas.
E não há âncora nem cais
que emudeça o júbilo dos mastros.

Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009