20.12.16

Nem sempre os pinheiros são verdes

Olívia Marques


Nem sempre os pinheiros são verdes.
Nem sempre há pinheiros no Natal.
Nem sempre as folhas dos pinheiros são perenes.
Nem sempre o que é perene é belo.
Por vezes o Natal é opaco como os dias vulgares.
Por vezes, ainda, é mais triste do que os amanheceres de Novembro.
Mas nem sempre a alegria é só alegria.
E nem sempre Novembro é triste.

Virgínia do Carmo

Desejo-vos um Natal com Paz, Amor e Conforto.
Que o ano de 2017 seja um ano melhor

12.12.16

Uma esquiva chama

Georges de La Tour

Agarrada a desafios sem freio,
a minha voz arredondou o canto
e removeu devagar o espelho
que reflectia as aves abatidas
na cesura alarmada do olhar.
Na marginalidade do sossego
reacendo o lume para que haja
colunas de fumo a seduzir o vento.
E soletro a oração que transporta
de treva em treva uma esquiva chama.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

5.12.16

Em seara alheia



Um rio, um nome

Na terra de meu pai corria um rio
e não era ainda o do tempo
nem eu nadara no múltiplo leito de Heraclito,
era um rio de claros seixos,
onde a sombra e o riso
acolhiam o nosso corpo
ainda intacto
no incêndio da manhã.

Na terra do meu pai havia laranjas
e chão, havia sol e murmúrios
e nós ouvíamos a respiração da noite 
por dentro das raízes das árvores
e o rio falava com as pedras
e com a luz
e nó corríamos
ou éramos levados pelo vento
que acendia a folhagem.

Na terra do meu pai não havia medo
só um rio e as águas limpas
onde as mulheres lavavam a roupa
e cantavam ao som da terra.

Na terra do meu pai corria um rio
e os homens tinham lugar
era um rio por coração
era um nome
para um homem.

Maria João Cantinho
In: Do ínfimo. Lisboa: Coisas de Ler, 2016, p. 32

28.11.16

No meu coração litoral

Agnieszka Motyka

Habita-me o brilho dos areais
quando a salsugem
tem a densidade de um aceno.
A navegação é inadiável.
Em minhas mãos passa,
perfeito, um navio.
Um punho de vento leva-o para o sul
onde a inquietude dos pássaros
se insinua no meu coração litoral.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014

21.11.16

Subversão

Francesca Woodman

Cortei todos os dedos no claustro 
das liturgias iniciáticas mais severas. 
As minhas mãos são agora as estremas 
da planura do vento de novembro.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

14.11.16

Não tem limites

Jean Dieuzaide

Não tem limites a cúmplice desordem
das cidades onde resistimos
ladeando de argila
as janelas das casas
para que o ferrolho do ruído
não abra uma ferida
nas paredes brancas
em que um extenso silêncio se instalou.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

7.11.16

Em seara alheia


Ainda é cedo, sabes?
As pedras são maiores que as nossas mãos.
No ar pesa a espessura da tristeza.
As uvas estão verdes.
Não é tempo do vinho.

O grão já é farinha, mas
o fermento dorme.
Não é tempo do pão.

Pequenos os seios das mulheres.
Não é tempo do leite.

As abelhas zumbem, mas
a flor do rosmaninho é só botão.
Não é tempo do mel.

Amargos os lábios dos homens.
Não é tempo do beijo.

Ainda é cedo, sabes?
Esperemos de mãos dadas,
sentados no caixote dos brinquedos,
bebendo os versos que havemos de escrever.
Verás que amadurece o tempo da saudade.

Licínia Quitério
In: Memória, Silêncio e Água. Poética, 2016, p. 58

31.10.16

Tantas vezes vida, tantas vezes morte

Agnieszka Motyka 

Neste momento dou ao meu perfil
a configuração de uma haste
que, ao primeiro sopro do vento,
adivinha um fogo posto nas palavras.
Conheço o rigor das noites
e o alarmante traço
da obsessão pelas trevas
que me cingem os braços
quando o reflexo do luar
incide nas manchas do meu rosto
e com os mais antigos olhos
posso rever o passado:
tantas vezes vida, tantas vezes morte.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

25.10.16

A escrita das águas

Emerico Imre Toth

Olho em meu redor.
A chuva afaga as raízes das árvores
e agita seus ramos como se fossem
mantilhas de seda agasalhando
os pássaros no rodeio do vento.
Sei que o tempo não se detém.
Os muros mais severos assinalam,
sem dissonância, a escrita
repisada das águas que a idade
guardou na borda das pedras.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

17.10.16

Quero inventar o mar de cada dia



Hoje, que não escuto o mar
fujo na crina de um potro livre,
sem jugo, em veloz cavalgada.
Tenho nos olhos um incêndio tangível
à luz que se quebra no galope
ágil e sonoro da fuga.
Irrompe sobre mim o perfil dos montes
que me diz a que distância deixei o mar.
Um odor de poeira impede-me de gritar.
Doeu-me a voz quando bradei,
sem fôlego, o verso de neruda:
quero inventar o mar de cada dia.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

10.10.16

Em seara alheia


Cantou cansado
Um hino ao desencanto,
Como se fosse possível
Tomar para a alegria
O caudal de impurezas
A deslizar da solidão.

Cantou com a fraca voz
Dos que olham para dentro
Dos poços à espera
Que a água transborde.

Rui Almeida
In: Muito, menos. Lages do Pico: Companhia da Ilhas, 2016, p. 36

3.10.16

Paz

Larry Burrows

Sobrepor a voz à dor sem pátria. 
Estar lá onde o olhar de todas as mães 
procura o olhar de todos os filhos. 
Ter um nome de combate para dizer paz.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

26.9.16

Bailado de gestos

Nijinsky

Aceito que o olhar teça e desteça
o contraste dos dias num bailado
de gestos que se desdobram
e prolongam para além da pele.
Quero-me no centro do espaço
onde tudo começa e acaba,
onde me uno e desagrego,
onde me deixo habitar
por uma quietude imensa.
Desvinculo-me de todos os enredos
para que a osmose das trevas e da luz
alcance o resgate do corpo
que se retalha roçando o chão
e se dissipa em pleno voo.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

19.9.16

No outono

Susan Deerges

No outono a lentura entretece os dias.
Cada uva mordida é um crivo do vinho
escorrendo nas gargantas mais sôfregas.
As aves sublimam a profecia das distâncias
com asas ansiosas de desertos e montanhas.
O mar, inclemente, afoga os navios e ama,
de madrugada, a bruma salgada
que alarma o eco iluminado de um farol.
Há uma espécie de desamparo
em cada árvore, abraçando
o vento rendida e desnuda.
As pessoas envolvem o desconforto da pele
em panos de tecelagem grossa
e vigiam de perto a febre dos filhos.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

12.9.16

Por amor

Ana Pires

Nasce-se e morre-se todos os dias por amor.
Mesmo aquele que se reinventa.
Como uma oferenda
ou um alarme que nenhum poema diz.
Da fenda dos lábios deixo sair
a linguagem cifrada dos enigmas
para escandir a sombra desprevenida
das sílabas em erótico tumulto.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

5.9.16

Em seara alheia


34.

Deixei o meu coração no forno,
é só aqueceres e tens jantar.
O que sobrar dá ao gato.
Eu sempre gostei do gato.

Raquel Serejo Martins
In: Aves de incêndio. Macedo de Cavaleiros: Poética, 2016, p. 50.- Desenhos de Ana Cristina Dias

29.8.16

O rio intocado de outros sonhos

Duarte Belo

Com os lábios ornados de cristal
quebro as razões mais sombrias
no dorso das contradições.
Não me reconheço em jogos encenados.
Disperso as nuvens carregadas
de abismo em duelo com a luz.
Projecto-me num diálogo
que rasga uma outra voz em espanto.
E detenho, em mãos cegas, a sorte e o revés
da biografia que me identifica.
Sei que por dentro da dobra do passado
corre o rio intocado de outros sonhos.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015 

22.8.16

Todas as gaivotas me perseguem

Saul Landell

Sem embaraço vou arrancar, com as unhas,
os pregos do barco que inventei.
Quero afundar-me e medir o fôlego
em que me salvo.
Enconcho as mãos para transpor a maré
e o litoral devassado pelo lodo.
Enrolo os pulsos em redes de pesca
e todas as gaivotas me perseguem.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

15.8.16

Ungido com palavras antigas

Anselm Kiefer

Ungido com palavras antigas ele atravessou
uma brenha de arbustos em chamas e disse:
Um dia as águas hão-de calar-se na gruta maternal.
Os animais selvagens morrerão nas mais íngremes
colinas onde a inundação nos olhos das mulheres
ensandecidas os levará à procura das nascentes.
Os homens caminharão na berma das estradas
carregando os filhos: órfãos, já, do seu próprio destino.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

8.8.16

Vem, cadência da música!

Monica Stewart

Traço na areia uma linha em movimento
de onda e rodo sobre mim mesma
quando as marés me bailam nas ancas.
Esta dança é em mim errática sedução.
O interlúdio da seda perfumada
em que me envolvo.
O jogo sensual no chão do peito,
como grito erguido sobre a língua.
Vem, cadência da música!
Suspende o silêncio que escorre
em pausas onduladas como água.
Encena-me em rituais profanos.
Acrescenta-me à partitura
ou ao gesto ensaiado e cerzido
nas rugas do meu corpo.
Vem e desliza inteira no êxtase da luz!

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

1.8.16

Em seara alheia


ESTENDO OS PULSOS

à lâmina da memória: cada gota que escorre é uma tempestade por 
dentro, um copo de veneno sobre um piano esquecido, um mapa
truncado

de uma cidade perdida. Ardem sombras de rosas no desalinho do 
tempo e um resto de cinza costura o teu retrato. O sangue da memória
não é a casa das coisas

é uma luz de estrela

por entre a poeira dos astros, um clarão de chamas no interior 
calcinado dos livros. Abro as portas da manhã

que as noites há muito fecharam. Cega-nos esta vã glória de estar 
morto e caminhar ainda, de ainda respirar, de amar sabe-se lá o quê,
cega-nos este desengano de sonhar ao relento

um lugar que não existe.

Nunca aprendemos a morrer de uma vez só. O sangue procura o 
sangue mesmo quando se derrama sobre a aridez do chão. E a terra
que nos consome não nos subtrai ao vício de lançar sementes sobre as 
pedras

das falésias.

O dia escurece a vaga moldura das coisas, as palavras escapam-se 
pelas fendas a reclamar o silêncio. Resta um sussurro a nomear 
animais extintos e uma luz inútil invisível que persiste

na ponta dos dedos.

Rui Miguel Fragas
In: O Rumor das Máquinas. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2015, p. 36


25.7.16

Procuro a voz da inocência

Henri Matisse

No insondável lugar das encruzilhadas
traço os sons, acolho as formas,
corrijo a dicção.
Evito que as letras ignorem o lume
perturbante onde podem arder os sonhos.
Procuro a voz diferida da inocência
para estilhaçar o verbo no centro do medo
e espalhar o meu nome pelas pedras
tão alheias a qualquer simbologia.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

18.7.16

Eternidade

Norvz Austria

Em horas incertas há aves tão moribundas 
como o tempo breve que nos sufoca. 
São artifícios que os calendários 
não registam porque o eixo da terra 
é um lugar de eternidade 
que, sem aviso, atravessa a vida e a morte.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

11.7.16

Um destino marítimo



Temos um destino marítimo
na memória, me ensinaram.
Por isso gosto de seguir a linha
verde da costa com a face exposta
ao hálito da maresia  e os pulsos
cravejados de conchas.
Fixo cristais de névoa no olhar
para desvendar o átrio privado
onde se escondem os barcos
quando o êxtase das ondas
explode dentro do vento.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014

4.7.16

Queremos um anjo de pedra



Vem comigo, amor.
Vamos contornar
as margens azuis do adriático
e trepar as escarpas
até ao castelo de duíno.
Queremos um anjo de pedra
nos rituais do enlevo.
Eu procuro de novo
o princípio de tudo,
para que me digas na voz de rilke:
as minhas emoções, que acharam asas,
voam, brancas, à volta do teu rosto.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

27.6.16

Em seara alheia


1

Primeiro era o breu,
depois o silêncio!
Não existia nada 
para lá do vazio.
Depois nasceu o verbo
que acendeu as luzes
e os poetas viram
que havia um mundo
imenso à espera
do seu olhar perspicaz
e das suas palavras.

Emanuel Lomelino
In: Génesis. Temas Originais, 2015, p. 5

20.6.16

Um cântico solar

David Oliveira

Não era uma simples sombra a que recuava
no interior da claridade espelhada nos lagos.
Incidia nas águas mais fundas
– onde a geometria dos seixos
se enrola nas raízes dos juncos –
e alongava-se pelas margens,
com a noite mais crua e molhada
a invadir-lhe os contornos.
Era a sombra do poente,
num horizonte que se olhava a pique,
tão incendiado como um cântico solar.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

13.6.16

Despojos antigos

Amandine van Ray

Enterro no chão a multiplicidade
de despojos antigos.
São de pedra como as casas envelhecidas
onde as teias roçam todas as traves
e se cruzam com a poeira dos móveis.
São lobos vagueando pela noite
a farejar insónias.
São raízes enredadas nos artifícios
da idade, nas preces de cada dia,
nos retratos de família.
Procuro agora a fonte mais distante
para inscrever na água corrente
a sublime nudez da juventude.
E alinho contra os muros
os sonhos que morreram no meu peito.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015