21.10.24

Até quando?

 



Recuam até ao lodo do silêncio.
Sangue engolido devagar.
Escorregadio como algas.
Difuso e seco como o medo.

São palavras sempre sujas
as que lhes agridem o corpo
e lhes laceram a alma.

A fuga é o único recurso
mesmo que o desenredo
seja a solidão ou a morte
tantas vezes inevitável.
Até quando?

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 51

14.10.24

Quando os relâmpagos estremecem a terra

A.E.E.

O movimento nodoso dos dedos 
resvala para uma irremediável timidez 
nesta errância de palavras confidentes. 
Com as mãos vazias, desarmadas, 
em desconforto, em alarme, quase faleço 
perto das trepadeiras presas em estacas 
quando os relâmpagos estremecem a terra em pousio. 
A lua enchente alumia as colmeias 
varridas pelo sobressalto de águas subterrâneas. 
Um escorpião arrasta-se pela margem de todos os sustos. 
Escondo as dores no estreitamento dos dias, 
e aprendo com os bichos a usar as mantas da noite 
porque sinto o sopro dolorido do vento 
a rasgar a intimidade das nuvens. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.47

7.10.24

Em uníssono



Indagamos, em uníssono, 
o avesso dos dias
retalhados por mãos adversas,
para não nos equivocarmos
com o rosto deste mundo
em constante calafrio, em arriscada deriva.
Porque estes são tempos exasperantes
de perder as pátrias e as casas
e os pais e os irmãos e os amigos
e os nomes e a memória.
E nas imensas planícies enegrecidas
é desabrido o som dos que bradam
quando as crianças ensurdecem no silêncio.
A meia-haste, arvoramos a rugosidade
das cinzas e o rasgão do medo,
para não permanecermos alheios
à saturação dos que sangram,
dos que tombam, dos que resistem.

Graça Pires, reeditado

30.9.24

Música

 

Pedro Pires



Convoco o rumor das teclas de um piano
em sonata de beethoven.
E ouço o grito intenso do silêncio
o vento enlouquecido
um inaudível lamento
uma luz no secreto rosto de deus.

É o coração seduzido
pela sublimidade da música.
Como se fora água pura
em diálogo com a terra fecundada.
Como se fora prece
a implorar o valimento da vida.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023. p. 15


23.9.24

Morte


                                                                   Em memória dos que pereceram nos  incêndios



Identificamos de forma evidente
os detalhes secretos
em que os corpos
sangram cinza sobre a terra.

É o eco mudo de um futuro
em queda ou em voo
concha de vento
vidro frangível
corda imperfeita da vida.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 61

16.9.24

Serão de lume as palavras?

             

Susan Derges



A lua cheia incide-me inteira sobre a face.
As margens das páginas incendeiam-se. 
Serão de lume, as palavras?
Em movimento estranho, 
a dosear-se de ritmos, 
a escrita cria seu próprio grito silente.
Na ressonância do silêncio 
apanho-me em flagrante. Ilicitamente. 
Como num pecado original. 
E dentro de mim me escondo, 
indiferente ao deslize de cada hora.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 64

8.9.24

Atrás do vento

 

Katharina Jung



Ainda que não sejam lineares
os caminhos percorridos
já esquecemos aquilo
que em cada etapa
foi tropeço queda
viagem inacabada.

Fincamos os pés sedentários
em avanços e recuos
até que o movimento da vida
nos torna viajantes e aventureiros
sem recear distâncias.

Às vezes corremos atrás do vento
numa espécie de estonteamento
sempre próximos do começo
dos primeiros passos
à procura do lugar onde fica
a casa em que nascemos.

Graça Pires

De O improviso de viver, 2023, p. 62

2.9.24

Em seara alheia




Lembras-te dos tempos azuis
intermináveis e belos?
Inesquecíveis nos corpos
um só momento e o azul
bêbado de nós;
eram tempos de florir
de partir à descoberta
de dizer sim quando foi sim
a palavra de dizer.
Lembras-te dos tempos azuis
no embalo terno e ousado
dos nossos mistérios?
A um passo
da curva acentuada
a estrada desnivela-se
e afunda-se pela montanha.
No malabarismo de viver
estranham-se ausências
revelam-se sombras
desaparece a sonoridade.
Consegui voltar:
incólume.

Paula Banazol de Carvalho
In: A tempo do tempo. - Lisboa: Poética, 2024, p. 16

26.8.24

Com uma praia na lembrança

 

Manuel Fazenda Lourenço


Percorro os verões antiquíssimos
quando era absoluta a cintilação do dia.

Havia uma praia com areia muito fina
Havia toldos brancos às riscas azuis.
Havia o prego e as cinco pedrinhas
que divertiam as meninas.
Havia o som de risos e brincadeiras.

Contra o vento flutuava o rigor da luz
em meu olhar tão cheio de candura.

Os rapazes faziam do jogo da bola
o gozo e o pretexto de espreitar
as mais distraídas a vestir o fato de banho.

O mar com ondas sempre enormes
era demasiado belo não fora o banheiro
a enfiar-me a cabeça na rebentação
como num cerco escuro
indiferente ao meu berreiro.
A água que eu engolia fazia descer a maré
tinha a certeza porque depois
a ondulação acalmava dilatando o areal.

E o sol sem pressa tornava os dias
mais longos e memoráveis.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 46   

29.7.24

A ociosa lentidão dos sentidos

 

Michael Bilotta 



Retomo pedaços de uma narrativa
em que me reconheço despida de artifícios. 
Distancio-me dos vícios morfológicos 
sufocando os gemidos do verbo. 
Deixo que me pertença 
a ociosa lentidão dos sentidos. 
Antigas convicções, 
entrecruzadas por conquistas e desastres, 
alastram como uma verdade 
primordial diante de mim, 
fragilizada pela fuga do tempo, 
pela completude da vida.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 79

Minhas Amigas e meus Amigos, vou fazer uma pausa. Voltarei a 26 de Agosto. Desejo que passem uns dias tranquilos, com saúde, paz e conforto.

Beijinhos.


22.7.24

Avistamento

                                            

Anne Packard


No meio do areal
a pulsação da mulher
impelia o veleiro.
 
Em antiquíssima visão
ulisses avistava ítaca.
Sentia o coração de penélope
e o faro do cão
quase exauridos de esperar.
 
Talvez pareça dissonante invocar
homero nesta página.
Come se fosse possível escapar
de um malogro inevitável
ou culpar o primeiro silêncio
pela inabilidade da voz inicial.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 29

15.7.24

Inclino o corpo sobre a terra

Jean-François Millet


Inclino o corpo sobre a terra 
para tocar o milho maduro. 
Tenho um arado impresso nos braços. 
Por isso a minha língua tem um sabor terroso. 
Um vegetal aroma esboça 
folhas de árvores em meus olhos,
íntimos das estações do ano. 
O mais luminoso verde 
invade a paisagem 
e um aceno inesperado fere-me as mãos 
como uma aflição ou um lamento 
de raízes em volta dos punhos. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 48

8.7.24

Em seara alheia

                     


Parecem maçãs rubras, as mães.
Sabem que cumprem o ofício das amoras: 
sangram para o interior. 
Depois de cada filho, compõem lentissimamente
o seu chão ainda incendiado pela vida.
Só existem filhos amados demoradamente
se escutarem o apelo vital
vindo das entranhas do coração.

Lília Tavares
In: Nas mãos a sede dos pássaros. Lisboa: Poética, 2024, p. 9

1.7.24

A imperfeição da luz

 

Manuel Fazenda Lourenço



No rigoroso itinerário da lembrança
a sombra de um lobo espera
instintivamente em teu olhar
que a montanha se erga intacta e branca.
A mesma que trouxeste da infância
e perpetua dentro de ti a neve imaculada.

Contudo foi com um sorriso
deslumbrado e breve
que começaste a amar
a imperfeição da luz perto do mar
enquanto o verão
entornava julho no teu nome.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 30

24.6.24

Intacto azul

Instituto Português de Serigrafia


Nenhum vestígio de interdição 
na memória de outras quilhas, 
intacto azul onde os peixes voam 
e flutuam no suco das anémonas 
ou na liquidez dos olhos das gaivotas. 

Sou a rosa dos ventos 
plasmada no vazio 
de um cosmos oculto 
e acharei, de muito longe, 
uma praia de barcos ancorados. 

Graça Pires 
De Poemas, 1990, p. 49

Este poema faz parte do meu primeiro livro "Poemas" que, no dia 29 de Junho, faz 34 anos que foi editado.

17.6.24

Em seara alheia

    •  

3.

Ninguém sai ileso
de uma claridade prematura.

Este quarto,
insurrecta metáfora
que espreita
a grelha costal do ébano.

O corpo, alambique de harpas taciturnas.
A pele alumiada
pelas habilitações literárias do gume.

Caducou
a biografia de antídotos
que expatriava o limbo.

Ser agora um homem
na potência crucial da bruma.
Arquivo de mitologias nefastas.
Mapa sem alvéolos.
Hora de ponta
no espaço tumoral.

Alberto Pereira
In: Tarkovsky: o sacrifício. Costa da Caparica: The Poets and Dragons Society, 2024, p.68
Prémio Ulysses 2023

10.6.24

Noite

Silena Lambertini 



Em plena noite delineava-se no chão
a luz derramada pela lua.


Era fácil ver as minhas mãos 
propícias a qualquer sobressalto 
no chamamento dos afagos. 
Eu ouvia os meus pensamentos 
como uma suplicação. 

E a perturbação das estrelas em meu olhar 
provocava uma espécie de cegueira 
no canto dos olhos. 

Como se a noite me entrasse pela casa. 

Graça Pies 
De O improviso de viver, 2023, p. 27

3.6.24

O lugar definitivo do silêncio

Magdalena Russocka 

De modo inútil arremesso 
contra um muro de barro 
os pensamentos banais. 
Interrogo-me obsessivamente 
sobre o chão que me espera, 
sobre o pó que afagará 
o corpo que é meu, 
sobre o poder das trevas 
debaixo da terra, 
sobre o rumor dos cemitérios 
quando a lua cheia incide 
nas lápides e nas cruzes de pedra. 
A morte. Eco perpetuado 
em passos rigorosamente 
lentos e apressados. 
Farpa suspensa sobre o coração 
como um estigma. 
Lugar ausente de luz 
onde se cai sem aviso 
nem tempo nem idade. 
O lugar definitivo do silêncio. 
O derradeiro gesto
 a servir de limite ao perfil do rosto. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.74

24.5.24

Adeus, meu irmão, meu amigo

 


                                                Para o meu irmão Zé Pires, in memoriam (1952-2024)



Suspendeu-se o tempo em teu olhar 
tão cheio de silêncios.
Com a dor que sentimos
pudemos ver a mãe a segurar a tua mão
para que as sombras 
não te doessem nem te assustassem.
Levas contigo todos os abraços 
extraviados de ti.
Guardamo-los no coração 
e a eles nos abraçamos fortemente.
Queremos pensar que dormes 
como se fosses menino.
Acreditamos que serás a luz 
que atravessará a noite 
para nos deixar no peito 
a ternura que te pertencia.
Descansa em paz.

Graça Pires, 24 Maio 2024
                           

 Voltarei quando puder

20.5.24

Em seara alheia

 





III - 2


Trazes cravado no ventre o amor como um búfalo
uma memória-casa que cresce rente ao rumor dos
   moinhos
Trazes o mar / uma pétala / um saguão de Julho
e vazados os olhos em afluentes de espuma

Trazes aberta como um pão
a construção da infância
e no coração / uma casca de tília / uma flor sepulcro

Trazes / no fim do Verão
uma meda de lume
um molusco / uma falésia-gávea
e
campainha-templo de pedra em calma
habitado de estorninhos e de diurnos cálices de vento
distante da cal e da ferrugem
o escafandro-tempo do poema

José Pedro Leite
In: Ascensor de sombras. Lisboa: Poética, 2022, p. 66


13.5.24

Sedução azul

 

António Cravo


                                                                                                 Para António Cravo


Quando tudo parece sitiar o coração

há barcos que passam sobre o vigor

da voz a resgatar aqueles

que soçobraram nos sonhos.

 

E os barcos fazem-se pássaros de fuga 

abrindo o espaço à sedução azul.

 

É de pura maresia o ar que se respira

como se houvesse um sopro cristalino

a roçar a amarração de âncoras libertadas.


Graça Pires

De O improviso de viver, 2023. p. 43

5.5.24

Um mistério maternal

Bojan Jetvic 




Em meu peito enraizou-se 
uma natividade branda, 
como um quebranto antigo. 
Dedilho com os nós dos dedos 
a colcha branca de renda 
onde me sento 
com o vagar exacto do prazer. 
Com a minha própria pele me visto 
e paira sobre mim 
um mistério maternal 
onde a vida se cumpre.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021.

29.4.24

Uma luz intensa

 


Retivemos da paisagem o intenso
mistério da luz por entre as casas,
como se em cada casa batesse
um coração a par de outros corações,
ansiosos de caminhos livres.
Agora pertencem ao silêncio
mais nítido as canções, os gritos,
as lágrimas, os detalhes de uma festa
acontecida num dia com tantos dias dentro,
numa cidade habitada pelo país inteiro. 

Graça Pires
De Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro, 2024

22.4.24

Era madrugada em Lisboa


Sem prazo, sem aviso, sem detença,
aconteceu em abril
o mais esperado tempo
e, com ele, o cheiro
da terra que nos pertence.
No contorno deste chão
um grito abraçou o povo comovido
com o assombro e com os cravos.
Reinventaram-se os sonhos
e as palavras fraternas.
Era madrugada em lisboa.
E o dia captou a dádiva da luz matinal
para que cintilasse no olhar de toda a gente.
No clamor de cada rua,
a palavra liberdade
passou de boca em boca,
até ao enrouquecimento da alegria.


Graça Pires
De Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro, 2024

15.4.24

Convite para o lançamento do meu novo livro no Barreiro

 
Para quem mora por perto do Barreiro, convido para partilharem comigo a celebração dos 50 anos do dia 25 de Abril de 1974, no espaço cultural Terceira Margem, com o lançamento deste livro. Vai ser uma festa linda.

Fica aqui um poema do livro:


Era cada vez maior o número
de pessoas em toda a parte.
Em frente do rio, hordas de jovens,
em absoluto desatino,
dançavam como se o corpo possuísse
a extensão de todas as ruas.
Tinham nos pés sem disfarce
o ritmo dos cantares do povo.
Sabiam de cor as quadras, os refrãos
que tinham escutado aos pais e aos avós.
Entoavam-nos em contentamento,
em deslumbre, como se voltassem
à infância e a cidade fosse o colo imenso
onde cabia a vida toda.

Graça Pires

8.4.24

Nunca se tinha visto uma festa assim

50 anos do dia  25 de Abril de 1974: louvor a um dia com tantos dias dentro
   



O amanhecer foi tão inesperado
que lisboa vibrou em todos os lugares
antecipando o regozijo.
Nunca se tinha visto uma festa assim,
com carros de combate, chaimites,
com os militares e o povo em euforia
a encher cada rua, cada jardim, cada árvore.
E a cidade era de toda a gente.
Havia palmas, vivas à liberdade 
a tatuar as bocas,
lágrimas a ancorar o olhar 
em voos infinitos.
Foi bonita a festa, pá.

Graça Pires
De Era madrugada em Lisboa: louvor a um dia com tantos dias dentro, 2024. p. 20

1.4.24

Convite para o lançamento do meu novo livro em Lisboa

 Foi uma festa de Poesia muito bonita. Muito obrigada a todas e a todos os que estiveram lá. Obrigada aos que quiseram ir mas não puderam. Foi um final de tarde feliz. Bem-hajam.

O livro está em pré-venda através do link:

https://poeticalivros.com/collections/poesia/products/era-madrugada-em-lisboa-louvor-a-um-dia-com-tantos-dias-dentro


Às minha Amigas e aos meus Amigos, a todos os que gostam da minha poesia convido para virem celebrar comigo os 50 anos do dia 25 de Abril de 1974.
Deixo um poema do livro:


Eram militares.
Eram jovens.
Carregavam no peito
o peso da arma e do receio.
Quantos rezaram?
Quantos choraram?
Quantos vacilaram?
O retrato dos filhos perto do coração.
A imagem da mulher a cercar-lhes o corpo.
As mãos das mães cheias de bênçãos.
E todos tão cheios de coragem!

Graça Pires

25.3.24

Perplexidade

Vladimir Kush


Nenhuma simbologia pode explicar
o halo da chama antes da cinza.

A luz queimada na estranheza
de tudo o que perece.

O infinito perene do instante
que se dissolve no colapso do tempo
e no mais evidente alvoroço da vida.


Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 49

Desejo a todas e a todos uma Páscoa tranquila e cheia de amor.


18.3.24

O imenso silêncio dentro de mim

A convite da Amiga Rosélia

                                                            

Procuro o lugar onde começa o silêncio. 
O silêncio transparente do mar, 
dos barcos ao longe, da sombra dos mastros, 
do brilho dos búzios. 
O silêncio das sementes, 
da melancolia das árvores, 
do restolho do trigo, do afago da terra. 

O imenso silêncio dentro de mim,
na ansiedade das palavras distantes,
quando, sem aviso, ele se afunda
no meu peito insensatamente,
como se fora um vício antigo
transfigurando as sílabas.
Como se uma inesperada sedução
cristalizasse os poemas que escrevo
de dentes cerrados, cativando a voz.
Como se a linguagem se evadisse
na incompletude dos sonhos.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021

11.3.24

Em seara alheia

 


Oração em pleno voo

Sem sequer pensar
Eu ascendo os degraus
E lanço-me aos céus
E no meu voo nem seguro os cabelos
Que se soltam ligeiros
Como flâmulas
Entre a amenidade das flores
E o aroma dos frutos outonais

Ao subir
A paz e a esperança invadem-me
E deparo com campos de trigais
E cores multicores
No devaneio impensado
Solta-se da boca um beijo
Rasgando os céus

Sei que na minha oração
Uma luz celestial
Tão cândida e serena como
O meu rosto
Se projectará
Nos confins do universo

Amanhã não sei dos voos
Porque só o hoje prevalece

©Piedade Araújo Sol
In:
Olhares em tons de maresia, 2013-11-05

4.3.24

Rumo ao sul

Aglayan Agac

                                                                                                            
                                                                                                        Para a Lília Tavares

Fascinada por árvores antigas 
escreveste um livro 
e fizeste de cada folha uma jangada. 

Num desvio da noite 
quando a brisa 
agitava devagar as glicínias 
fugiste rumo ao sul 
com a escuridão a perseguir-te. 
Um sopro salgado dava a todo o percurso 
um abraço marinho. 

Gritaste todos os termos náuticos. 
A força dos braços ganhou 
a firmeza das tábuas. 
Atravessaste as vagas com a fúria 
dos que enconcham as mãos 
para refúgio da pérola perfeita. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 31

26.2.24

A sugestão de uma reza

Hervé Martijn


No lado mais vulnerável da noite, onde me perco,
sei que perto de um abismo se pode enlouquecer. 
Assumo o risco de cada improviso, 
desarmada perante as minhas próprias vertigens. 
Numa viagem interior, num recolhimento, 
regresso a mim própria, asfixiada pelos poros do tempo. 
A sugestão de uma reza ajuda-me a aceitar 
o peso do vazio de cada instante 
exposto à promessa de uma aventura, 
para que eu não sucumba no lodo que me cerca. 
Unidas, as mãos preservam 
a feição das preces mais singelas, 
à espera que a vida passe 
sem melindrar o rosto das palavras. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 34

19.2.24

Até ao tumulto de um grito




Prolongo o silêncio 
até ao tumulto de um grito 
de um choro 
de uma desnorteada multidão. 
Plano inclinado da voz 
onde resvala o ruído do mundo 
dilatado por sons anónimos. 
Qualquer pausa reitera 
o murmúrio mudo do verbo. 
Sem história. 
Tão próxima do presságio de um rosto. 
Ou da ferida que a si mesma se rasga. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 47

12.2.24

Em seara alheia

 



12 

Sobre o corpo
uma azáfama de abelhas

Falta ainda um pouco mais
para a epopeia das mãos

Urge esperar
que se ateiem de lume as últimas sombras
que invada a tarde 
a fúria do feno
despidamente
e que venham as línguas do fogo
percorrer os veios da mais antiga pedra

que caia a prumo o desejo sobre um mar de vidro
que more o coração no azulado dorso de um pássaro

que apenas possamos chamar-nos
por qualquer uma daquelas palavras
ardentes 
anunciadoras do Verão

José Pedro Leite
In: Manual de relentos: I-Explicação dos incêndios. Lisboa: Poética, 2023, p. 20

5.2.24

Para além das penas

Duy Huynh


                                                                                        Para a Solange Firmino
De improviso riscas no ar 
o absoluto equilíbrio 
dos pássaros entontecidos 
pela precisão do voo. 

Pressentes seu gozo 
num eco de asas 
abertas ao infinito 
onde a noite se liberta 
e em cintilação se renova. 

Queres voar assim 
do cume dos sonhos. 
Para além das penas. 
Para além da vertigem. 
Inocente de súbito.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 16

                  Quem quiser ouvir o poema dito pelo Pedro pode fazê-lo aqui:
                  https://youtu.be/CQNM_J1xg_I?list=UULFp1MkC4fuxOs5HDyHVNGN-A

                                                                

                                

29.1.24

Retomo o monólogo

Ana Pires Livramento


Com a voz a embater no adro da vida, 
retomo o monólogo em linguagem 
dispersa vinculada à emoção. 
Há lembranças embutidas nas pedras 
cobertas de musgo que assinalam 
esconderijos improváveis onde aceito ser, 
duplamente, a silhueta de um corpo 
e o barro inquieto por dentro dos sonhos. 
Amarro os pulsos nas árvores em flor 
para atrair os insectos e os pássaros, 
com a urgência do verão no tear das seduções. 
Imprudentes, as mãos deixam-se doer 
escondidas nas sombras 
com os dedos curvos de cansaço. 
Protagonista do meu destino, 
não cesso de nascer, 
acendida no sangue das manhãs. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.76

22.1.24

Canto baixinho

Whitney Hayward


Observo atentamente o que me circunda: 
as folhas secas coladas no desvão 
do telhado por um vento impaciente 
o alarido dos pardais a romper 
o silêncio dos mais dispersos carreiros 
o brilho da manhã quase austero 
de tão límpido a espalhar-se na planura 
a beira dos caminhos alagada de sombras 
como um excesso fresco agarrado à pele. 

E canto baixinho, com o som amarrado 
na garganta onde as palavras 
quase morrem sob a língua. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 17