30.10.08

Quem me disse?

Marco Somoni

Encostada às paredes interditas do futuro,
vou desenhando as memórias do caos
em que me escrevo, neste cansaço de pedra.
Como um exorcismo inadiável, tudo
o que aceitei sem reservas percorreu
a cor evasiva dos contrastes
que, nos meus joelhos descuidados,
linearmente se desfizeram.
A caminho de todas as fragilidades,
os fantasmas do amor acotovelam-se
na minha voz, condenados a um sonho
mudo, gravando no silêncio o eco
dos abraços que não deram.
E vêm todos calados, como se a morte
das palavras tivesse acontecido.
Quem me disse que nunca tinha fim
o tempo dos desejos?

Graça Pires
De Outono: lugar fágil, 1993

27.10.08

Inventar nascentes

Cartier-Bresson

A minha profissão era inventar nascentes.
Eu nada sabia da ressonância das ondas,
até que fiz dos sonhos um alibi
e arrisquei qualquer fuga,
com a manhã rebentada no peito.
Indiferente à respiração dos peixes,
sigo Ícaro até às profundas águas
de um amor em fogo,
enquanto me crescem, na garganta,
as raízes do delírio.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

26.10.08

PRÉMIO


Este prémio foi uma gentileza das Amigas e Amigos de:
Agradeço muito sensibilizada e ofereço o Prémio a todos os que visitam o "Ortografia do Olhar" e principalmente aos que gostam da minha poesia.

23.10.08

Memórias de Dulcineia VIII

Balthus
Repito as palavras.
Lentamente as pronuncio.
Tão límpidas que me dói dizê-las:
Ela batalha em mim
e vence em mim
e eu vivo e respiro nela.

Guardo as palavras,
secretamente,
como quem esconde,
com pudor, o lado
mais sensual do corpo.
Guardo as palavras.
Assombro-me com elas.
E choro a meio da noite
com os olhos carregados
de inocência.
Como se fora uma criança.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

20.10.08

Em seara alheia


tinha a sopa a arrefecer e a mãe chamava.
tremiam-me as pernas no complicado anseio
de saber se ela estava. já não me lembrava do nome.
rosalina seria. era quase um instante quando o lençol
era aconchegado no pescoço. eu não sabia.
poderia ser maria ou carmo ou antónia.
mas não. acho que era rosalina e de mãos atadas
no silêncio da mesa, eu achava que era morna
a lembrança. sabia que o momento não era próprio.
e eu ainda com as meias até ao joelho
e uma fita nos cabelos. descia a mão
até ao princípio do dia.
e a luz chegava para cegar de medo o meu sono.
e os dedos aconchegavam as pernas.
e as mãos no destino húmido do desejo.

Maria Quintans
aqui
In: Apoplexia da ideia, il. João Concha. Lisboa: Papiro, 2008

16.10.08

Sabor a romãs

Manuel Fazenda Lourenço

Fico à entrada do outono cativa de hábitos estivais.
A palidez do sol arde nos beijos dos adolescentes
e tem um acentuado sabor a romãs.
Apetece cantar até à extenuante cor
dos campos lavrados e nenhum calendário
mudará o clima que os meus olhos reclamam.
Sei hoje que o amor e a morte são a matéria
preferida dos que pernoitam debaixo
de roseiras bravas e sabem
que tanto as garças como os papagaios de papel
voam sempre mais alto no outono.
Vou no vértice desses bandos
numa migração de risos transparentes.


Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

13.10.08

Alguns apontamentos

Paul Strand


Antes que a memória me apanhe desprevenida,
tomo alguns apontamentos de lavoura:
os cestos de vime escondem os sobressaltos
do vento de outono, no meio do azinho
cortado no verão;
os sulcos de trigo inquietam-se
com as chuvas estivais, quando os guizos
das cabras soam de nordeste;
um temporal pode explodir no bico dos melros,
se o tempo das cerejas sair do calendário,
ou o sol não brilhar no mês de março;
na próxima floração acenderemos o forno
e o pão que comermos será caseiro.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

9.10.08

É possível

António Carneiro

É possível que já não haja pássaros
a esvoaçar em torno das palavras
com que calei
o desespero das manhãs
quando tinha do cosmos
uma visão romântica.
Hoje nasce-me no olhar
uma luz quase cruel
com que ilumino
a linha de sombra
que me cerca as mãos.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

6.10.08

A cidade

André Kertész

A cidade designa-se pelo desassossego
impregnado de histórias errantes.
Multidão anónima, individual, insondável.
Geografia de uma orfandade interior.
Paradoxal labirinto de aves migratórias.
Nenhum caminhante se esquiva à nitidez
da noite sitiada pela própria sombra.
Pé ante pé, a intimidade refugia-se
nos olhares povoados de afeição
e desdiz o rumor do medo
com um gesto de aconchegar palavras.
A cidade é o epicentro de uma confidência
partilhada por quem sabe manipular o silêncio.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

2.10.08

Em seara alheia



ARCANO

As altíssimas torres
foram trespassadas por pássaros
alucinados. Um deus ofendido
pelos povos terem inventado
os dicionários, para fugir
ao castigo de Babel,
fez explodir essas formas
de arranhar o céu, sacrificando
milhares de vítimas. Algumas lançaram-se
das alturas, na fuga às chamas
para a enganosa respiração
da manhã. Consta que deus,
disfarçado de mortal
se escondeu nas montanhas.

Inês Lourenço
In: A Enganosa Respiração da Manhã. Porto: Asa, 2002