25.4.22

Amor-cidade. Amor-abril

O nosso amor é pássaro voando. Mas à toa. Rasgando o céu azul-coragem de Lisboa. 
Amor partindo. Amor sorrindo. Amor doendo. 
O nosso amor é como a flor do aloendro. 

    
    Deixa-me soltar estas palavras amarradas 
    para escrever com sangue o nome que inventei. 
    Romper. Ganhar a voz duma assentada. 
    Dizer de ti as coisas que eu não sei. 
    Amor. Amor. Amor. Amor de tudo ou nada.     
    Amor-verdade. Amor-cidade. 
    Amor-combate.   Amor-abril.
    Este amor de liberdade. 

   Joaquim Pessoa 
     In: Amor combate (excerto). Lisboa: Moraes, 1977, p. 35

18.4.22

Para nasceres de novo

Anka Zhuravleva


Outrora inventavas e destruías as palavras 
com que respiravas boca a boca a brisa das madrugadas. 
Mas bastava-te um detalhe indeciso da luz 
para te perderes em silêncios que são desvios para a tristeza. 
Não te aflijas se as tuas mãos procuram ainda a inocência. 
Para nasceres de novo. 
Para que o teu rosto não se embacie no interior dos espelhos. 
Para não teres a idade do teu nome. 
Afasta-te de olhos vendados. 
Confunde os caminhos e o destino. 
Entreabre as pálpebras ao lugar onde nasce o riso 
e se afoitam aves brancas a caminho do sul. 

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 69

11.4.22

Em secreto alarme

Cristiana Ceppas

Nunca se revela, eu sei, o recuo das mãos fatigadas 
da fadiga do olhar, em secreto alarme. 
Encostado a muitas solidões está o brado 
de quem cala a própria angústia no fermento azedo 
que não leveda o pão, tão ázimo, 
tão árido, dentro de bocas famintas. 
Nem sempre o desenho dos lugares abandonados 
fica ligado à superfície vazia do passado. 
É no olhar que acontecem todos os abandonos. 
Na imagem interrompida de um rosto. 
No significado inesperado de uma sombra. 
Nas flores apodrecidas na jarra. Na casa vazia. 
No ruído insuportável do silêncio. 
Invento árvores extintas para que venham aves 
de húmidas pupilas pousar em folhas orvalhadas 
e refresquem os lábios que se abeiram da nascente. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 49

4.4.22

Memórias de Isadora XVII



No lugar onde nasci 
quase nenhum acolhimento 
me foi dádiva. 

Como se todas as estradas, 
todas as águas, todas as pedras, 
todas as gentes me rejeitassem. 

Uma insídia sobre a nostalgia 
concebeu um banimento 
com fantasmas a perseguirem 
minha sombra. 

Era difícil consentir a frustração 
que me minava por dentro 
e desatar o nó 
que me isentava do passado. 

Contra a corrente, eu sei, 
remei sempre a minha vida 
e na margem renegada me cobri 
de desejos vadios e ideais interditos. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 51