24.6.19

Em seara alheia




Ainda não sei


Ainda não sei como contar-te que cresci
sem mar. Que andei a verter sangue a vida
toda, de coração golpeado pelas cercas vivas
dos meus lugares. Não sei como contar-te 
da minha ânsia de fugir, de correr até à praia
e cegar a memória, de como me atirei
em desespero contra os espinhos, e de como
sangrei, exausta, na sombra dos fracassos.

Agora cheguei ao mar e o sal arde-me
nas feridas. Tenho um chão de areia quente
que me queima os pés, tão gastos de correr.
Cheguei ao mar. Ao espanto comovente 
do mar, e permaneço imóvel. Tão quieta
como as rochas ao longe.
Sou livre e não me movo.
Não sei como se faz isto de viver.

Virgínia do Carmo
In: Ecos de Green Rose. Poética, 2019, p. 35

17.6.19

Futuro

©Shutterstock

Nas próximas horas nenhum astrolábio
medirá a latitude e a longitude deste sítio.
Não queremos saber a altura dos astros.
Os fusos horários corrompem-nos a pele.
Inventaremos uma órbita que nos prenda
ao futuro em rotação vertiginosa.
O passado será a nesga de luz
onde as luas se mostrarão fase a fase.
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013, p. 14

10.6.19

Como um aviso

Pedro Pires

Quando as espigas surgiram de repente
nos sulcos das searas, sem que o braço e a foice
afagassem o trigo, houve homens
que se amarraram à terra aguardando que o corpo
se transformasse em campo lavrado.
Houve mulheres que cegaram, em plena
madrugada, perto dos pomares.
Houve meninos que se fecharam por dentro
dos segredos que as mães guardam no sangue.
Houve pássaros que suspenderam o voo
sobre as casas desertas. Como um aviso.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 18

3.6.19

Em seara alheia


21.

Dizia-te
da minha inaptidão
para nomear os lugares 
mais inóspitos da alma,
lembras-te?
Dizia-te que haveria de saber
todos os nomes de todas as coisas
e só a ti, um dia, os revelaria
como súbita 
revoada de aves azuis.
Dizia-te…
mas nunca cheguei a aprender
o verdadeiro nome
dessas aves azuis
e por isso nunca fui capaz
de as chamar
a cruzar o nosso céu.
Que pensarias hoje,
se eu te dissesse
que o meu dicionário,
[exíguo que era]
Abrevia-se cada dia
um pouco mais?
E a fala cada dia um pouco menos.
Não sei já o que chamar
a esta longa aprendizagem
do esquecimento.

Lídia Borges
In: Garças. Braga: Poética, 2019, p. 32