29.6.11

Quando chegaste

Alvarez Bravo

Como se nada pudesse alterar o percurso de uma paixão,
enfeito os ombros de mimosas e mudo de perfume, para
inquietar quem roce os meus cabelos.

Chegaste: trazias nos olhos toda a claridade 
das manhãs da tua infância
e um sorriso de menino triste no contorno da boca.
Chegaste: o meu olhar propício ao teu olhar. 
A marca da sede nos meus lábios. 
Um frio perturbado, coagulando-me o sangue e o sexo.
Chegaste: lembras-te como, em nossas mãos, 
se insinuou um rio e, sem tréguas, os dedos 
deslizaram, lentamente, adivinhando
o começo da nascente em nossos corpos ?

Graça Pires
De Reino da lua, 2002


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22.6.11

Em seara alheia


DOEM BRINQUEDOS NAS VEIAS

Por trás da idade nasce a infância,
os brinquedos enferrujados nas veias doem.
As aves que levantam do coração,
adivinham o tempo escasso.
Trazem nos bicos delírios
que pousam no lodo corporal.

Correm crianças no estuário das mãos.
Mergulham nos dedos
e quando o crepúsculo chega
secam-se às impressões digitais.
Levam nas pálpebras castelos de areia.
Só mais tarde,
quando a idade lhes crava a lua na boca
conhecem a calvície dos dias.

Desarrumados na insónia
sentam-se a espiar a infância.
Sonham uma candura nómada
que lhes adormeça a velhice.

Alberto Pereia

In: Amanhecem nas rugas precípicios. S. Mamede de Infesta: Edium, 2011

15.6.11

Junho é o teu mês, filho






No início da
primavera vou encher-te o jardim de amores-perfeitos.

Assim falou meu filho quando janeiro findava.
Eu guardei junto ao coração estas palavras e pensei:
vão finalmente as rosas púrpuras
incendiar o próximo verão?

Graça Pires
De: A incidência da luz, 2011

3.6.11

Há máscaras de lama

                                                                  István Kerekes

Há máscaras de lama cobrindo a astúcia
no focinho das feras sem sono.
Há a ferrugem inflexível dos martelos
na ira dos deuses distantes dos homens.
Há o ostracismo que se vislumbra
nos muros da cidade
onde a ácida solidão das letras
exprime e trai gestos de raiva
queimando os dedos.
A tinta escorre pelas paredes
como se fosse sangue seco
a corroer um percurso de medo
que nenhuma fuga altera.
Depois só resta a sujidade cicatrizada
no tédio de quem passa.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011


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