19.3.23

Um poema para o Dia Mundial da Poesia

A convite da Amiga Rosélia aqui deixo a minha participação


Nas pontas dos dedos, 
uma insubmissa escrita teima 
na promessa de um poema 
com sílabas luminosas. 
Escrevo silenciosos vocábulos, 
agora que a poesia se detém 
no fingimento de entrelinhas, 
soletrando a febre nos lábios. 
Podem dizer de mim 
que nunca me cansei das palavras 
porque foi com elas que me aprendi inteira. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 56

12.3.23

CONVITE - O IMPROVISO DE VIVER

Foi uma festa de Poesia muito bonita. Muito obrigada a todas e a todos os que estiveram lá. Obrigada aos que quiseram ir mas não puderam. Foi um final de tarde feliz. Bem-hajam.


O livro está em pré-venda até ao dia 17, através da ligação

Às minha Amigas e aos meus Amigos, a todos os que gostam da minha poesia convido para a partilha desta minha festa.
Deixo um poema do livro:

Todos falavam disso

 

Houve quem dissesse que voava

sobre a casa onde nasceu para ver o mar.

 

Causava estranheza o intenso brilho

a demorar-se-lhe no olhar

no instante poente dos fins de tarde.

 

Todos falavam disso.

 

Nem uma palavra foi dita sobre o bando de aves

que sobrevoava a casa em voo brando

com cristais-de-rocha no esquisso das penas.


Graça Pires


6.3.23

Pandora

Walter Crane

De múltiplos espelhos emergiu a fêmea. 
Divina e humana. 
Estratagema de zeus para ser perverso, 
no tempo em que os homens 
e os deuses se divertiam juntos. 
Era irrelevante acorrentar-lhe os pulsos. 
Suas mãos eram aves 
ansiosas de voos ousados. 
Os ventos, deslumbrados, 
soltaram a luz e a sombra 
em seus dedos que, sem pudor, 
destaparam o vaso da inocência. 
A palavra culpada enroscou-se-lhe 
no corpo como um estigma sem fim. 
E apenas bem no fundo dos seus olhos 
permaneceu, para sempre, a esperança 
de ser salva ou de salvar. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 30

Apesar de se tratar de um mito esta é a minha homenagem a todas as mulheres.

27.2.23

Procuro o lugar onde começa o silêncio

William Turner


Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio das montanhas azuis,
da neve, das planícies eternas,
das glicínias, do vinho maduro,
da música de schubert,
do coração dos pássaros,
da fulguração da alba,
dos crepúsculos de william turner,
das sombras, dos retratos,
das abelhas entontecidas de pólen.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 60

20.2.23

Em seara alheia



Houve um tempo 
em que a palavra amor, 
imensa de promessas, 
morava na boca dos poetas. 

Houve um tempo 
em que o pranto habitava 
o olhar das mulheres com a ruína na voz. 

Houve um tempo 
em que as pedras 
tinham o rebordo da morte. 

Carmo Baião 
In: Sabemos que as pedras têm alma. Carnaxide: Cordel d'Prata, 2022, p. 15

13.2.23

Na véspera dos segredos

Laura Makabresku

Não omito os prometimentos 
entranhados na carne e no sangue 
na véspera dos segredos. 
Não esqueço as noites 
em que o desejo doía tanto 
quanto a incontida alegria 
de um abraço. 

Intermitente, o coração procura no amor o batimento certo.


Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021

6.2.23

Perto da criação do mundo

Ana Pires Livramento


                   
                         Para a minha irmã Teresa e para o meu irmão Zé Pires

Era a quinta dos avós. 
Nós eramos crianças 
e subíamos às figueiras. 
As pernas aprendiam o equilíbrio. 
A vertigem da queda a oscilar no corpo. 
Chegávamos aos frutos pelo cheiro. 
A boca antes das mãos a lamber o mel. 
A respiração tão apressada 
como um tumulto de pássaros. 

Num jogo para lá do tempo. 
Perto da criação do mundo. 

Graça Pires 
Do livro O improviso de viver, a ser publicado em março deste ano.

30.1.23

Para que a verdade se mostre inteira

Katia Chausheva

Um pretérito desafio deambula 
por dentro dos sentidos 
e desenha um espaço sagrado 
anterior a um horizonte esvaído no olhar. 
Cerro os olhos 
para que a verdade se mostre inteira. 
Quero o código secreto do encantamento 
que a memória guarda. 
Quero o pórtico litúrgico 
atravessado por antígona 
com a precisão e o decoro 
de quem se reivindica 
herdeira da luz e das sombras ancestrais, 
de quem atenua a distância entre o grito 
e o silêncio de uma desarmonia interior. 
Fantasmas exigem, em uníssono, 
o sangue inocente. 
Ai, a fragilidade da vida na ara dos sacrifícios! 
Ai, o puro instante de um nome fraterno 
abrasando a alma! 
Ai, a coragem aflita desta punição indefesa!

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 32


23.1.23

Estão a caminho do mar

Henri Cartier-Bresson

Estão a caminho do mar 
as mulheres vestidas de luto. 
Souberam da tormenta 
pela imensa salinidade dos lábios. 
Têm uma quilha enterrada no peito.  
E querem ser aves de sal e vento. 
E vão, dizem, acender as estrelas 
que guiam os marinheiros 
na aflição das noites intermináveis. 
O destemor tão perto da loucura! 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p.39

Se alguém quiser ouvir o poema dito pela minha filha Ana pode fazê-lo aqui:
                                    
                                                    https://youtu.be/Z3CngT426fk

16.1.23

Ajoelho-me na terra

Katia Chausheva 

Ajoelho-me na terra, vulnerável e insubmissa. 
Perto do chão há gritos aferrados à vida e à morte. 
Há partos e perdas dolorosas. 
Há o urgente fôlego de cada nascente junto às pedras 
com nervuras de erosão e luz 
a depurar o reflexo da água. 
Há flores e bichos. 
Há raízes de árvores e de plantas e musgo 
e alfazema e cardos e fenos. 
Há campos repousando do cansaço da terra. 
Perto do chão onde me ajoelho, 
há o reino subterrâneo da noite 
em conflito tenso com o dia, 
numa dialéctica posta à prova por olhares videntes. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 27

9.1.23

Em seara alheia





Litorânea II 

As ondas revolvem os barcos dispersados pelo vento 
para possíveis futuros 
(todos breves momentos). 
Ela ouve as sereias que não cantam, apenas cochicham. 
O mar será eternamente uma grandeza que a desarma. 
Na maré, um pássaro morre, 
no momento em que outro voa 
em direção ao horizonte frágil. 
Involuntariamente, na sua distância, este recebe o verão. 

O encontro desses dois infinitos que se esbarram 
na troca de estações, cruzam entre si espectros 
que nunca se tocarão no tempo. 
O mesmo tempo que captura as rugas 
sob o sol cada vez mais voraz, 
enquanto a juventude se esvai 
diante dos olhos. 

Solange Firmino
Nov. 2022

2.1.23

Apetece entoar o Magnificat

Silena Lambertini


Uma luz branca freme tão rente a tudo o que é visível, 
que apetece entoar o magnificat com a mais cristalina voz, 
em devoção, em perplexidade, em agradecimento. 
A quem o louvor? A que prenúncio de alvorada? 
A que rumor festivo? A que invisível mão? 
Eu sei que um fogo divino contém todos os mistérios, 
todos os sacrifícios, todos os milagres, 
todos os castigos, todos os bálsamos. 
Eu creio na redenção dos que amam a vida 
e sonham, e sonhando se salvam. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 68