30.7.18

Em seara alheia


Cheiro de mar

Trazem o cheiro do mar
em redes na pele,
o crepúsculo cativo nas conchas
a areia açoitada por ventos teimosos, despida no olhar.
Têm nos dedos o cântico do desejo
como pergaminho desenhado no odor.
Trazem cheiro de mar,
sal colado aos cabelos
e fome de suor.

Isabel Cabral
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 46

23.7.18

De pedra em pedra

Ana Pires Livramento


A manhã reacende o sol
na aba do chapéu que uso, 
expressamente,
quando passeio à beira da água.
De pedra em pedra
regresso à outra margem do rio
onde te procuro para respirar 
a brisa de alfazema 
que transportas no sorriso.


Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015, p. 53

16.7.18

Entre silêncios

Katia Chausheva

Diz o que viste quando desviaste
o olhar da claridade matinal.
Ficaste com mãos indecisas
na orfandade da luz.
E, ao redor dos lábios,
um espaço deserto desdizia
o esboço das palavras
que sempre afirmaste serem tuas.
Como se precisasses de outra boca,
de outra voz, de outros sons.
Como se o centro esvaziado de um grito
traçasse um vínculo contínuo entre silêncios.

Graça Pires
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 121 

9.7.18

Menina de tranças

Amedeo Modigliani

Não sei se os espelhos
me querem enganar,
ou se tenho agarrado à pele
o clarão das searas.

Hesitantes, os pássaros, gostam
de balouçar nas tranças
que me caem sobre os ombros,
enquanto corro, assombrada
e sem fadiga, em direcção
à última luz do dia.

Escondi, atrás dos cântaros, algas
escorregadias para deslizar até ao mar.

Vou conhecer a exultação das marés
no excesso da torrente.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 32 

2.7.18

Quase sede

Francesca Woodman



Um calor, quase sede,
amadurou as cerejas
nas bocas festivas,
envoltas em aromas de gula.
Apetece a sede assim adivinhada.
Apetece o hálito espesso
que a língua em seu ceder retém.
Apetece morder. Até ao caroço.
Com os dentes devassos de disfarçar o riso
ou roer as unhas junto aos muros
que amam os vendavais
e a flagrante solidão das borboletas.

Graça Pires 
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 117