30.1.23

Para que a verdade se mostre inteira

Katia Chausheva

Um pretérito desafio deambula 
por dentro dos sentidos 
e desenha um espaço sagrado 
anterior a um horizonte esvaído no olhar. 
Cerro os olhos 
para que a verdade se mostre inteira. 
Quero o código secreto do encantamento 
que a memória guarda. 
Quero o pórtico litúrgico 
atravessado por antígona 
com a precisão e o decoro 
de quem se reivindica 
herdeira da luz e das sombras ancestrais, 
de quem atenua a distância entre o grito 
e o silêncio de uma desarmonia interior. 
Fantasmas exigem, em uníssono, 
o sangue inocente. 
Ai, a fragilidade da vida na ara dos sacrifícios! 
Ai, o puro instante de um nome fraterno 
abrasando a alma! 
Ai, a coragem aflita desta punição indefesa!

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 32


23.1.23

Estão a caminho do mar

Henri Cartier-Bresson

Estão a caminho do mar 
as mulheres vestidas de luto. 
Souberam da tormenta 
pela imensa salinidade dos lábios. 
Têm uma quilha enterrada no peito.  
E querem ser aves de sal e vento. 
E vão, dizem, acender as estrelas 
que guiam os marinheiros 
na aflição das noites intermináveis. 
O destemor tão perto da loucura! 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p.39

Se alguém quiser ouvir o poema dito pela minha filha Ana pode fazê-lo aqui:
                                    
                                                    https://youtu.be/Z3CngT426fk

16.1.23

Ajoelho-me na terra

Katia Chausheva 

Ajoelho-me na terra, vulnerável e insubmissa. 
Perto do chão há gritos aferrados à vida e à morte. 
Há partos e perdas dolorosas. 
Há o urgente fôlego de cada nascente junto às pedras 
com nervuras de erosão e luz 
a depurar o reflexo da água. 
Há flores e bichos. 
Há raízes de árvores e de plantas e musgo 
e alfazema e cardos e fenos. 
Há campos repousando do cansaço da terra. 
Perto do chão onde me ajoelho, 
há o reino subterrâneo da noite 
em conflito tenso com o dia, 
numa dialéctica posta à prova por olhares videntes. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 27

9.1.23

Em seara alheia





Litorânea II 

As ondas revolvem os barcos dispersados pelo vento 
para possíveis futuros 
(todos breves momentos). 
Ela ouve as sereias que não cantam, apenas cochicham. 
O mar será eternamente uma grandeza que a desarma. 
Na maré, um pássaro morre, 
no momento em que outro voa 
em direção ao horizonte frágil. 
Involuntariamente, na sua distância, este recebe o verão. 

O encontro desses dois infinitos que se esbarram 
na troca de estações, cruzam entre si espectros 
que nunca se tocarão no tempo. 
O mesmo tempo que captura as rugas 
sob o sol cada vez mais voraz, 
enquanto a juventude se esvai 
diante dos olhos. 

Solange Firmino
Nov. 2022

2.1.23

Apetece entoar o Magnificat

Silena Lambertini


Uma luz branca freme tão rente a tudo o que é visível, 
que apetece entoar o magnificat com a mais cristalina voz, 
em devoção, em perplexidade, em agradecimento. 
A quem o louvor? A que prenúncio de alvorada? 
A que rumor festivo? A que invisível mão? 
Eu sei que um fogo divino contém todos os mistérios, 
todos os sacrifícios, todos os milagres, 
todos os castigos, todos os bálsamos. 
Eu creio na redenção dos que amam a vida 
e sonham, e sonhando se salvam. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 68