25.4.21

Liberdade

— Liberdade, que estais no céu… 
Rezava o padre-nosso que sabia, 
A pedir-te, humildemente, 
O pão de cada dia. 
Mas a tua bondade omnipotente 
Nem me ouvia.

— Liberdade, que estais na terra… 
E a minha voz crescia 
De emoção. 
Mas um silêncio triste sepultava 
A fé que ressumava 
Da oração.                                                                                                                                               
Até que um dia, corajosamente, 
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado, 
Saborear, enfim, 
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.   

Miguel Torga
In: Diário XII, 1975  

Se quiserem ouvir o poema, dito e interpretado pelo meu filho Pedro podem fazê-lo aqui:

 https://youtu.be/9LPzqrigbJ0                                

                                                                                               
                                                                 

19.4.21

Memórias de Isadora VII



Não omito a fadiga dos recomeços.
Qualquer espelho me garantia a solidão. 

 Em demanda fui da ténue simbiose 
entre a sede e qualquer fonte. 
Meus lábios mordi até sangrar toda a secura 
dos dias e das noites confundidas no olhar. 
Rastejei dentro de mim para escutar, 
atónita, o chamamento da música. 
Da música de chopin, de beethoven, de wagner. 
Música que ninguém ousara dançar. 
Música que de modo espontâneo 
me delineou nos passos as cores eternas 
de um prisma de luz. 

Alguns dos meus trejeitos 
eram o desdobramento de pétalas de rosa, 
ou velas ao vento a pelejar as ondas. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020. p. 31

12.4.21

Trouxe o restolho dos fenos



Trouxe o restolho dos fenos 
e um mel antigo sobre os lábios. 
Furtou um barco no rio para remar 
lentamente no rendilhado 
das margens que oferecem às aves 
um ninho clandestino. 
Mergulhou de cabeça para dar aos peixes 
o suco guardado em sua boca 
e o perfume entranhado nos dedos 
presos ao caudal da corrente. 
Vacilante, enrolou o sorriso no passado 
e chorou com saudades do sul.

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 9

5.4.21

Memórias de Isadora VI


E dancei descalça por todos os lugares, 
imitando os rituais aos deuses 
das límpidas manhãs, 
ou aos anjos das trevas, 
na euforia do enlevo. 

Cúmplice fui de bacantes e de bichos. 
De árvores e de chuvas fui irmã.  

Concebi-me a usar a máscara das tragédias 
gregas até escutar vozes divinas. 

Bailarina imperfeita e persistente 
fiz do meu perfil a promessa inequívoca  
de um cerimonial dos sentidos, 
 um salto mortal do meu próprio começo. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 23