30.9.19

A amazona

Amedeo Modigliani


Gosto de vermelho.
É a cor do fogo e do sangue.
É uma cor vistosa e coquete.
Como eu.
Como as rosas que mandei
plantar no meu jardim.
Como a minha jaqueta de montar.

Não acham singular
este equívoco de eu estar
retratada de amarelo?

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 29

23.9.19

As primeiras chuvas de setembro


Katia Chausheva

Antes da queda, o pássaro ferido deteve-se
na árvore mais frondosa para cingir a haste
quebrada em suas pupilas ausentes do brilho.
Tinha voado para além das nuvens
quando os braços do vento tornaram interdita
a distância azul que perseguia.
Ao cair da noite demandou o abismo
para ajustar o voo à viagem já vencida.
E com asas de orvalho urdiu
as primeiras chuvas de setembro.

Graça Pires
In: Soltícios e Equinócios: antologia. Coordenação de Emanuel Lomelino. Lisboa: Edições Vieira da Silva, 2016, p. 63

16.9.19

Em seara alheia


Questão

Será o verbo amar uma conjugação calibrada, ou um
mero exercício de hipnose?

Questionava o sonhador, ao apócrifo desenhador de
calçadas propagandistas e ébrias de incertezas.

A resposta esgrimiu vários cenários. Tantos, que o
verbo amar escondeu-se numa falésia,
e apenas exercitou a contagem das ondas num
esboço de marés infalíveis.

José Luís Outono
In: Mares encrespados. Poética, 2019, p. 14

9.9.19

Gargalhada


Georges Dussaud



Plenos de astúcia promulgamos, 
com a sonoridade do vento norte, 
a normalidade de rir ruidosamente 
e com o excesso de quem é capaz 
de troçar da própria cara.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013, p. 15

2.9.19

Sempre soubemos

Igor Levashov


Quase acreditámos na luz rodopiando as sombras
para tornar transparente a maciez do húmus
preso à torrente das chuvas.
Pressentíamos que qualquer coisa de comovente
se alojava no brilho da folhagem atravessada
pelo perfil das aves migratórias.
Sempre soubemos que há rosas
que se desfolham antes de alguém as ver
derramando um leve aroma sobre o delírio da cor
para deslumbramento das borboletas.
Nunca se repete, sempre o soubemos,
a curva do tempo na concha ansiosa do olhar.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 48