27.6.16

Em seara alheia


1

Primeiro era o breu,
depois o silêncio!
Não existia nada 
para lá do vazio.
Depois nasceu o verbo
que acendeu as luzes
e os poetas viram
que havia um mundo
imenso à espera
do seu olhar perspicaz
e das suas palavras.

Emanuel Lomelino
In: Génesis. Temas Originais, 2015, p. 5

20.6.16

Um cântico solar

David Oliveira

Não era uma simples sombra a que recuava
no interior da claridade espelhada nos lagos.
Incidia nas águas mais fundas
– onde a geometria dos seixos
se enrola nas raízes dos juncos –
e alongava-se pelas margens,
com a noite mais crua e molhada
a invadir-lhe os contornos.
Era a sombra do poente,
num horizonte que se olhava a pique,
tão incendiado como um cântico solar.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

13.6.16

Despojos antigos

Amandine van Ray

Enterro no chão a multiplicidade
de despojos antigos.
São de pedra como as casas envelhecidas
onde as teias roçam todas as traves
e se cruzam com a poeira dos móveis.
São lobos vagueando pela noite
a farejar insónias.
São raízes enredadas nos artifícios
da idade, nas preces de cada dia,
nos retratos de família.
Procuro agora a fonte mais distante
para inscrever na água corrente
a sublime nudez da juventude.
E alinho contra os muros
os sonhos que morreram no meu peito.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

5.6.16

Simplicidade


As nossas vozes cruzam-se pela casa 
sem qualquer pressa. 
Mais uma vez repito para não esquecer 
o nome das flores que plantámos no canteiro 
dos quartos: azáleas, alecrim, gardénias, 
alegrias-do-lar, rosas brancas e vermelhas. 
As violetas no parapeito da cozinha dialogam 
entre si um silêncio vegetal e quase familiar. 
Dão-se bem aqui as violetas, referiste 
ajeitando os vasos com delicadeza 
como se a posse antecipada do prazer 
te inundasse as mãos.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013