26.9.16

Bailado de gestos

Nijinsky

Aceito que o olhar teça e desteça
o contraste dos dias num bailado
de gestos que se desdobram
e prolongam para além da pele.
Quero-me no centro do espaço
onde tudo começa e acaba,
onde me uno e desagrego,
onde me deixo habitar
por uma quietude imensa.
Desvinculo-me de todos os enredos
para que a osmose das trevas e da luz
alcance o resgate do corpo
que se retalha roçando o chão
e se dissipa em pleno voo.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

19.9.16

No outono

Susan Deerges

No outono a lentura entretece os dias.
Cada uva mordida é um crivo do vinho
escorrendo nas gargantas mais sôfregas.
As aves sublimam a profecia das distâncias
com asas ansiosas de desertos e montanhas.
O mar, inclemente, afoga os navios e ama,
de madrugada, a bruma salgada
que alarma o eco iluminado de um farol.
Há uma espécie de desamparo
em cada árvore, abraçando
o vento rendida e desnuda.
As pessoas envolvem o desconforto da pele
em panos de tecelagem grossa
e vigiam de perto a febre dos filhos.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

12.9.16

Por amor

Ana Pires

Nasce-se e morre-se todos os dias por amor.
Mesmo aquele que se reinventa.
Como uma oferenda
ou um alarme que nenhum poema diz.
Da fenda dos lábios deixo sair
a linguagem cifrada dos enigmas
para escandir a sombra desprevenida
das sílabas em erótico tumulto.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

5.9.16

Em seara alheia


34.

Deixei o meu coração no forno,
é só aqueceres e tens jantar.
O que sobrar dá ao gato.
Eu sempre gostei do gato.

Raquel Serejo Martins
In: Aves de incêndio. Macedo de Cavaleiros: Poética, 2016, p. 50.- Desenhos de Ana Cristina Dias