27.5.19

Alice

Amedeo Modigliani


Na hora em que o calor entranha
no ar o cheiro da urze seca,
um breve estremecimento
contagia cada gesto meu.

Sabem: os agrados das meninas
são suculentos como os medronhos bravos
e tão secretos que só as mães os adivinham.

É por isso que me escondo
no meu sorriso comedido,
e enfeito os cabelos
com a fita que mais me agrada,
e me revelo com argúcia às pessoas
que olham, coniventes, o meu rosto.

Não me perguntem de quantos aromas
se inundou já o azul do meu vestido.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p.19

20.5.19

Das mais antigas dores

Josef koudelka

Do lado distante das noites, a lua acesa
sobre os muros ilumina o rosto daqueles
que sempre entenderam o trajecto
escolhido pelos pássaros e pelos rios
e pelos amigos que nunca voltaram.
Os dias foram cerzindo em seu olhar
o caminho esquecido das mais antigas dores,
onde guardam agora o destino de suas mãos
declinadas sobre as estacas.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 30

13.5.19

Uma mulher

Amedeo Modigliani


Gosto de guardar segredos.
Tenho, mesmo, um jeito discreto
de alinhar os meus dias: como um arquivo
de fotografias de viagens;
como um regato silencioso
correndo de meus cílios;
como o percurso da estrela-d’alva
no desvio das horas.

Gosto de ler Rimbaud
não falarei, não pensarei em nada:
Mas um amor imenso
invadirá a minha alma

Toco com os lábios
os múltiplos espelhos
que me deformam a boca,
extraviada de afectos,
e aguardo esse amor.

L’amour est a réinventer, on le sait.
Eu também sei.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 26

5.5.19

Em seara lheia


XIII

As mães,
nítida seda
semeando harpas no cansaço.

Alberto Pereira
In: Como num naufrágio interior morremos. Prefácio de Gonçalo M.Tavares. Pontevedra: Editora Urutau, 2019, p. 34