29.12.13

Amizade

Cleri Biotto Bucioli



Só os amigos conservam no olhar o nosso nome. 
Só eles nos devolvem o movimento 
das mãos para que os gestos nos comovam. 
Só com eles partilhamos a casa e o silêncio. 
Sem urgência.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

Que o ano de 2014 traga a todos uma nova esperança, um novo recomeço.

20.12.13

Este Natal que temos




     


     Nem sempre o homem é um lugar triste.
    Há noites em que o sorriso
    dos anjos
    o torna habitável e leve [...]
                    Eugénio de Andrade










Que a LUZ se espalhe no coração de todos
como um abraço amigo
para que seja solidário o Natal que temos
 
 
UM NATAL DE AMOR E UM ANO DE 2014 COM PAZ
  
Pintura de Georges de la Tour


11.12.13

Um surdo alvoroço

Francesca Woodman

Envelhecemos com uma vara
de medir o sol na linha do olhar.
Não entendemos os sinais inscritos
nas margens do abismo.
Nem os bosques onde se abrigam
as sombras e a chuva.
Nem a misteriosa relação dos astros
no lado mais silencioso dos céus.
Um surdo alvoroço ecoa, fúnebre, na paisagem
quando, para além das montanhas, o piar dos pássaros
é tão nítido como o sopro do medo que transtorna
a leve inclinação das planícies.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

6.12.13

Há um homem à entrada dos meus sonhos




Recordando Nelson Mandela, sempre

Desato o sono e sento-me numa pedra, mais perto de mim.
E vi-o de novo. 
Tão sereno como uma vereda para a nascente.
Digo, então, que há um homem à entrada dos meus sonhos. 
Traz, nas mãos, promessas de trigo 
e, no olhar, a alegria, presa por um fio. 
Espanta-me a facilidade com que chora. 
Deve ser por isso que existe um rio na minha insónia
e não posso ignorar a limpidez dos seus olhos.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994

2.12.13

Como um cerco de presságios

Van Gogh

Vem do rio um vento interminável, como um cerco
de presságios que nos gela os ombros.
As cobras enroscam-se nas pedras,
sobressaltadas com a agitação da terra.
As abelhas escondem-se no regato das chuvas
esperando que as colmeias as procurem.
O chão arde em nossos passos, vítimas
e culpados do desvario dos caminhos.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

21.11.13

Infância


No ano em que o lajedo da eira 
se encheu de granizo nós éramos crianças. 
Um arco de luz rodeava as nossas mãos disponíveis. 
Eram de neve os pássaros 
que nos esvoaçavam no olhar. 
Como se fossem anjos, como se fossem pétalas. 
E nós éramos crianças: o tempo em que a inocência 
nos torna indiferentes à magia dos lugares.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

13.11.13

Decisão

Iman Maleki


Não traço planos. 
Amanhã cada minuto será transitório. 
Todos os pormenores que me são próprios
terão a precisão das cordas do alaúde 
em dedos sensíveis. 
Serei nómada e levarei comigo 
a máscara do veneno junto à boca.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

6.11.13

A voragem da lenha antes do fogo

Manuel Fazenda Lourenço

À procura de lugares isolados
demoramos os passos na terra
acabada de lavrar e devassamos
a raiz das árvores mais sombrias
para que a estatura dos corpos
tenha a verticalidade de um tronco.
Pode ser poente esta vertigem
de sombras permutadas no olhar
enredado no difícil voo das aves
que cegaram com a luz do meio-dia.
Por isso as janelas trancadas 
nos trilharam os dedos
quando ficámos perto do lume
e desenhámos no recorte das mãos
a voragem da lenha antes do fogo.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

31.10.13

Morte

Andrey vahrushew

Esgotaram-se as palavras que repetiam 
os nomes e os rostos onde repousava a luz. 
Essa luz tão precária que se dissipa 
quando a terra se faz túmulo no luto do olhar. 
Já não indagamos as datas cobertas de cinza 
por sabermos que o enredo da vida 
não se deixa em testamento.

Graça Pires
De Caderno de Significados, 2013

22.10.13

Pai

Georges de La Tour


À memória de meu pai, no centenário do seu nascimento

Hoje pensei na solidão dos pássaros
quando as searas se incendeiam. 
E pensei em ti, pai, que partiste tão cedo
 como se tivesses vindo do lado 
mais desolado das sombras. 
O que sei eu das uvas entre os teus dentes 
no tempo das vindimas? 
Que pássaro de cinza, diz, 
te sobrevoou o verde do olhar? 
Se prolongasse o poema 
dir-te-ia como os meus olhos te lembram. 
Mas não posso. Vou devolver ao mar 
as conchas negras da minha colecção.
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

14.10.13

Sempre soubemos

Igor Levashov

Quase acreditámos na luz rodopiando as sombras
para tornar transparente a maciez do húmus
preso à torrente das chuvas.
Pressentíamos que qualquer coisa de comovente
se alojava no brilho da folhagem atravessada
pelo perfil das aves migratórias.
Sempre soubemos que há rosas
que se desfolham antes de alguém as ver
derramando um leve aroma sobre o delírio da cor
para deslumbramento das borboletas.
Nunca se repete, sempre o soubemos,
a curva do tempo na concha ansiosa do olhar.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

7.10.13

Dor

Moises Saman

Não sei quantas vezes chorei 
a boneca de papelão 
que se desfez na água 
quando lhe dei um banho. 
Eu não sabia que podem ser tão breves 
as coisas que abrigamos no próprio coração.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

30.9.13

Onde o outono não é um cenário sossegado

Nathan Wright

Olho o rosto dos homens 
onde o outono não é um cenário sossegado, 
porque lhes sobe até à boca 
um vulcão de espanto, 
a rir na minha própria cara.
Então, um súbito amor a saber a sangue 
dramatiza a voz dos disfarces 
no interior de mim mesma, 
como se desse conta do lodo 
que me cobre os olhos 
e, de repente,um rio 
me corresse na alma sobressaltado.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994

23.9.13

Um abraço para Ramos Rosa




Na folha branca rolam como pedras as palavras
do poeta: lisas, nuas, brancas de tanta luz.
É possível articular seus versos,
encontrar na dança das sílabas
o mais deslumbrado silêncio,
ainda grito, ainda sangue, ainda pólen.
É possível ir de sombra em sombra,
pela margem do vento,
até à branca clareira do poema.
É possível dizer seu nome
rasgando na boca o cantar dos pássaros
no inverno quando a neve cobre as árvores
de brancura e um fio de água
lhes escorre pelas asas brancas, de seda.

Depois quem poderá adiar este abraço
que o coração reclama?

Graça Pires 
In: Um poema para Ramos Rosa. Labirinto, 2008

19.9.13

A mesma luz

Vincent Van Gogh (detalhe)

A lua quase cheia acentua o ladrar dos cães
em pátios onde crescem 
desordenadamente as giestas.
Um duplo estremecimento lateja nos espelhos
como sombras insinuadas no eixo da luz,
a mesma luz que adivinhamos nas searas,
nas estrelas, nos girassóis de Van Gogh,
no post-it colado na mesa a dizer amo-te,
no risco incontornado dos relâmpagos.
Há um espesso ouro despenhado sobre as árvores 
porque o outono se detém na inclinação dos dias
e a colheita nos devassa a intimidade dos frutos.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

12.9.13

Deixa-me beber o mel dos frutos



Vladimir Clavijo


Um pássaro de fogo hesita em atear a noite
porque temos a floração das árvores
atravessada no rosto a consentir-nos
um olhar capaz de agitar as tílias
ou fazer explodir as papoilas por dentro do deserto.

Há medronhos e morangos e bagos de romã
cortando a fome talhada no milho-rei das searas.
Deixa-me beber o mel dos frutos,
a mim, para sempre rendida ao néctar
de teus lábios claramente incendiados
nas primeiras águas.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

5.9.13

O sinal de alarme

katia Chausheva


Regressei com a lentidão de quem vem de longe
do mar com pedras na boca para cuspir nos lugares
onde o vento envolve a gruta das nascentes.
Só a palidez das minhas unhas denunciava
o sinal de alarme que me atravessava os pulsos
mordidos por meus dentes quando a dupla sombra
dos barcos me roubou, em golpes certeiros,
o trigo onde se afundaram as foices.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

29.8.13

Tão frágil a construção do silêncio!

Ana Pires


No verão todas as manhãs são belas,
dissemos um dia, antes de sabermos
como nos pode asfixiar o áspero sangue
das correntes esfarrapando a espessura do lodo.
Tão frágil a construção do silêncio!

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

22.8.13

Sensualidade

Julien Dupré

Quando o estremecimento da brisa 
trazia o cheiro dos arbustos molhados
e o chiar das carroças carregadas de feno, 
as mulheres percorriam os caminhos
bamboleando as ancas em fantasiada dança. 
Seus passos denunciavam 
no chão o gozo dos corpos. 
Suas bocas lascivas cediam e recusavam 
o pedaço da fruta que apetecia 
morder em outras bocas. 
Os homens passavam devagar 
com o cio dos bichos a suar-lhes no sexo.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

15.8.13

Silêncio


andrey vahrushew


Talvez um golpe mudo 
construa a cegueira dos açudes 
talhados pelo vento 
no rastilho das noites, 
ou na corrente de um rio insubmisso. 
Talvez o silêncio seja a voz 
que sufoca o medo quando as aves 
começam a calar-se em nossas bocas.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

8.8.13

Um brilho quase fatigado



Anda uma claridade esquiva 
a rondar-nos a casa. 
De encontro às vidraças,
um brilho quase fatigado 
vai abrindo a noite 
à transparência do olhar.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

31.7.13

Na estiagem



Tão íntimo das nascentes, o verde das veredas
desfaz-se em cinza quando as serranias
ondulam o lume sobre o chão.
Na estiagem há-de ouvir-se o murmúrio
agonizante dos rios já perdidos do mar.
E quando o inverno chegar, os caudais galgarão
as margens se o excesso de cimento consentir às águas
que firam as casas e a estreiteza dos caminhos.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

23.7.13

Com o silêncio emboscado na voz

Ana Pires


Com o silêncio emboscado na voz
uma mulher atravessou um impossível retorno
rente a horários sem sentido.
Na linha das marés o magoado vértice das sombras
desenhava a solidão dos barcos destruídos.
Como se um frio de aço mutilasse todas as esperas.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

14.7.13

Pressinto a hora dos naufrágios

Joakim Eskildsen


Sobre a linha do horizonte sulco 
a tristeza que se apodera da noite 
pela extrema possibilidade da mudez. 
Pressinto a hora dos naufrágios 
em meus lábios onde rangem 
os cascos dos barcos sem rota. 
Tenho nos joelhos a turbulência das marés. 
E fico com os dedos arroxeados 
como se remasse dias a fio 
até amainarem os ventos. 
Quando a cegueira me exigir, 
posso olhar a minha sombra sem medo do luto. 

Graça Pires 
De A incidência da luz, 2011

7.7.13

Segredo

Manuel Fazenda Lourenço


Sem horas. Sem coordenadas. 
Sem pontos de referência. 
Sem pressa nem vagar. 
Diz só onde me esperas 
na véspera do verão que inventaste 
para clandestinamente nos amarmos.

Graça Pires
De Cadernos de significados, 2013

29.6.13

Um lugar para morrer




Naquele mês espalhara-se a insólita notícia
da vinda de andorinhas brancas
trazidas pelos ventos do deserto.
Todas as mulheres subiram às colinas
mais íngremes abandonando as casas,
dias a fio, com o corpo envolto em panos negros.
Tinham pressentido,
no lentíssimo movimento do voo, que cada ave
procurava apenas um lugar para morrer.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

14.6.13

Não falo da importância do brilho


Duane Michals


Nem sempre as janelas oferecem às casas
todas as possibilidades da luz.
Não falo da importância do brilho coado
nas traves, ou do vento espreitando as frestas.
Refiro a transparência consentida às aves
na pressa das cidades onde o voo se faz fuga.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

8.6.13

A eternidade dos abismos

Menez


Possuímos uma nudez que sangra
no barro da encosta mais íngreme
por onde rastejamos a catástrofe da secura,
tão propícia à perturbação das mãos,
quando no coração do tempo nascer
a véspera de um lamento anunciando
a eternidade dos abismos.

A fadiga das mãos pode apressar
a morte dos afectos, me dirás.
Em redor de um barco
apenas os forasteiros desconhecem
quem se salva, hei-de responder-te.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

1.6.13

Abandono


Johnny Herman

Para a Elisa Cristina

Marcados por todas as violências 
eles afiam as pontas dos dedos 
nos subúrbios da noite 
para que nenhum medo os surpreenda. 
Eles vagueiam por becos 
que cheiram a fogo e a sangue 
armados de raiva, 
privados de sonhos, 
cobertos de abandono. 
São meninos da rua, 
ou pássaros em fuga 
desafiando a própria solidão.

Graça Pires
De Caderno de Significados, 2013

26.5.13

Como se fosse masculino o criador



As bonecas de trapos 
feitas por mãos de meninas
tinham tranças de lã amarela 
para parecerem loiras.
Como se fosse masculino o criador.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011