o Verão não tinha limites.
a mulher lidava com a casa pele com pele
andava todos os dias muito de noite
dias e dias de noite de roda dos fetos
toda dentro do Verão sem nenhum
tornozelo de fora.
era o Verão em hora de ponta
a mulher arrastava-se dentro da mulher.
os dias só faziam sentido existindo noites
as noites só faziam sentido trincando nêsperas
e bordando palavras que dessem sombra no ventre.
uma noite a mulher bordou a palavra mulher
e deitou-se de bruços.
era quase luz quando a primeira letra se ergueu.
e sem que houvesse tempo de escolher canção e vinho à altura
dessa primeira letra saiu o corpo
íngreme
arado
torrencial
do que havia de ser o anjo.
Catarina Nunes de Almeida
In: Marsupial. Lisboa: Mariposa Azual, 2014, p. 16