30.7.07

Até à perturbação

Ansel Adams

Em noites de verão,
povoadas de sombras,
não ouso confessar a solidão.
O tempo altera na voz o destino da luz.
Os sons familiares tornam-se sombrios.
O luar, humidamente cheio,
encobre a raiva,
na boca agitada do poema.
A imagem invertida da lua,
a ferir as mãos
e a desmesurar as palavras
arrasta-me o pensamento
até à perturbação.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

26.7.07

Amanhecer

Pascal Renoux


Quisera perseguir o ângulo mais nítido do olhar
e encher de pressentimentos felizes
o exacto momento, em que a noite
adia um movimento de asas e se faz luz,
amando, maravilhada, as múltiplas
penumbras da paisagem.
Mas, apenas o vento permanece para adivinhar,
sem alarido, a textura da vertigem, em que se
movem as angústias de um azul exposto
à velada brisa da manhã.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

23.7.07

Uma inesperada tristeza

Gérad Castello Lopes

No verão, as mulheres caiam as casas e as memórias.
De branco : como as estevas e a lua cheia.
Os seus anseios se espalham, com a brisa,
na quentura das noites.
Por isso, conservam no olhar
uma inesperada tristeza.

Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

19.7.07

Ao sol de julho

Pedro Alvarez

Ao sol de julho dançámos um tango.
Subia da terra um aroma estonteante.
Sem receio de levantar os olhos,
tocámo-nos maravilhados.
Um húmido musgo cobria-nos as pernas,
enquanto a luz se bifurcava nas pedras,
e rebentava nas ondas,
e nos estremecia nas veias.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

16.7.07

Em seara alheia


A CONSTRUÇÃO DO POEMA
A construção do poema é a construção do mundo.
Não símbolos, não imagens, simples criaturas
do ar, evidências obscuras, enigmas luminosos,
as formas do vento, os silêncios do sono.
As palavras são impulsos de um corpo soterrado.

Uma condição de alegria no vazio sensual
que se desenha concreto na bruma vagarosa.
Letra a letra, desfibramos o coração do sol.
Vemos numa torre do vento uma árvore balouçando.
Vivemos no ócio da sombra mais materna.

Talvez o poema seja uma pequena lâmpada
solitária ou um branco sortilégio, o prodígio
que restablece a verde transparência
de um mundo imóvel, ou só uns fragmentos
obscuros, uma pedra clara, um hálito solar.


António Ramos Rosa
In Volante verde. Lisboa : Moraes, 1986

13.7.07

Como um enigma

Édouard Boubat
Rasgo, dentro de mim,
imagens desfocadas
com que encenei obsessões.
Uma linha de luz subverte
a penumbra do olhar,
como um enigma,
ou um remorso sem retorno:
um feitiço quebrado reinventando culpas,
caixa de pandora dispersando sombras.
Exponho-me no disfarce transparente
da linguagem, para que a intimidade
se insinue nos meus dedos.
Apodero-me da malícia das sílabas
a entreter a língua.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

11.7.07

Na lisura da areia

Henri Cartier-Bresson

De mãos a arder, risco uma cruz
na lisura da areia, para confessar
o remoto exercício da tristeza.
Já não sei, se são de asas ou de velas,
os sons que aportam meus ouvidos.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

10.7.07

Na entrada porosa da noite

Simon Tysko


Na entrada porosa da noite,
uma canção de embalar reconduz-me à inocência,
pela mão de qualquer encantamento.
Um negro perfume exala dos meus cabelos,
ateando-me, na cara, a remissão de todas as culpas.
Sou uma criança receosa
que salta um muro, denso de heras
e procura, por sombras invisíveis,
o caminho de casa.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

9.7.07

Em seara alheia


Ambição

Desenhar:
de um pássaro,
o vinco do vôo
no azul.

Sônia Barros
In Mezzo Vôo, São Paulo: Nankin, 2007

8.7.07

Para dizer trigo

Jean Dieuzaide


No fim da primavera, há homens que enchem
as mãos de terra para dizer trigo.
Lendas em desuso esquivam-se-lhes da voz.
No interior da fome, reconstroem a boca,
recuperando todas as expressões de indignação
e raiva. Nas suas queixas, hibernam os deuses
que lhes teceram a intriga do destino: tão efémeros
que resvalam nas palavras que omitem.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

7.7.07

É sempre em julho

John Dunn

Foi em julho, que bandos e bandos de gaivotas,
planaram sobre o olhar de tua mãe,
para que ao nascer, herdasses a secreta
violência das marés.
Agora, é sempre em julho que, dos teus olhos,
se avista um oceano inteiro,
enquanto um navio te cresce, perfeito,
sobre os lábios, soletrando íntimas paragens.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005