31.10.22

Em seara alheia




VII 

A infância, 
um bouquet de colmeias no peito 
e o sangue desenhado por Miró. 

Alberto Pereira 
In: Ecocardiodrama. Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2022, p. 33


24.10.22

Quando a chuva se anuncia



Quando a chuva se anuncia intransigente, 
já não há andorinhas esvoaçando pelas casas 
nem se distinguem as dunas 
onde me deitei no mês das uvas. 
Na raiz de cada árvore começa a germinar 
a sede inicial agasalhada pela terra, 
em respiração lenta. 
As janelas fechadas provocam uma singular estreiteza, 
uma impressão vacilante nas mãos instáveis 
dos meninos e dos homens. 
Só as mulheres possuem a conivência das águas. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 35

17.10.22

Tempos houve em que pintava

Christine Ellger

Tempos houve em que pintava
com obsessão, paisagens amarelas. 
Folheando a sua revista favorita 
leu que uma estranha doença 
atingira todos os girassóis. 
Sentiu-se culpado. 
Quando voltou a pintar 
escolheu a cor negra.
Um esbatimento de luz 
anunciou a interdição do brilho 
em seu olhar, para sempre incerto. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 15

10.10.22

Memórias de Isadora XX




Experimentei, tantas vezes, 
o inesperado aroma 
das árvores da infância e a humidade 
do nevoeiro a entranhar-se-me nos ossos. 

Nos sabores, que à boca concedi, 
interroguei os mares, iludi distâncias 
e sobre o tempo saltei sem dar por isso. 
Indefesa me senti dos incontáveis 
artifícios da idade. 

Sobre mim se estreitava, eu pressentia, 
uma morte inescapável. 

Por capricho dos deuses 
nada é perene, nada sobrevive 
à implacável raiz que a terra exige. 
Nada resiste às leis que a própria vida impõe. 

Recolhida na resguardada luz 
dos poentes convergia e afastava 
as sombras como uma prece. 

Pelas concavidades da noite 
ouvia tocar os sinos da igreja 
e era como se um veneno me alagasse inteira.

Graça Pires
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p.52

3.10.22

Em seara alheia




[A Palavra] 

Dizem que a palavra morre 
Quando é dita 
Num qualquer dia. 

Eu digo que a palavra 
Só começa a viver 
Nesse dia. 

Emily Dickinson 
In: Versos traídos: antologia de poesia traduzida por Carlos Campos. Lisboa: Edição de autor, 2022, p. 41