24.11.10

A oriente dos sonhos

Dorothea Lange


Aqui já ninguém se comove
com canções românticas.
Noutros lugares talvez.
Não aqui, onde há homens encostados
ao muro do desencanto,
esperando o fuzilamento da sua sombra
a oriente dos sonhos.

Graça Pires
Em Conjugar afectos, 1997

17.11.10

Canções sem palavras

Pouco a pouco desfolharam-se as rosas
em todos os jardins iniciando o enredo
das chuvas sobre as casas.
Estávamos no mês em que os crisântemos
se tornam mais brancos.
Contra a luz não ousávamos quebrar
o silêncio que na música se abrigava.
Schubert e as canções sem palavras.
O arco da voz preso no violoncelo.
O piano e o rumor sublime dos anjos.
Escutávamos a palavra não dita da sonata:
o azul dos lírios em quintais antiquíssimos!

Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

10.11.10

Pode ser um grito

Gleb Garanich


Às vezes nascem do silêncio os dedos do medo,
com anéis de falso ouro oxidado pelo brilho
do olhar de quem pressente um luto inesperado
ou um pássaro à beira do sangue.
E sabemos que a morte pode ser um nó
ou um grito ou uma trepadeira enroscada
no corpo ou na lápide onde escreverão
o nome que tivemos.

Graça Pires
De O silêncio : lugar habitado, 2009

3.11.10

Em seara alheia


30.

procura o curso da água
se te acercares do rosto
da cidade.

todos os homens
beijarão as tuas preces à
medida que sobrevives ao
ventre do teu vestido dançando
ao som do alaúde.

retomo o silenciar da romaria
sem, ao menos, chorar as ondas.

Jorge Vicente
In: Hierofania dos dedos. Coimbra, Temas Originais, 2009