28.6.21

Perfil

Ana Pires Livramento

De passagem, 
como a véspera imprecisa 
do poema, 
principia em mim 
a planície agreste 
da solidão dos outros. 
E a não ser 
o silêncio poente 
dos meus olhos, 
tudo o resto me diz 
que sou um pássaro 
a voar, inconsequentemente, 
no sentido das palavras. 

Graça Pires 
De Poemas, 1990, p. 41


Minhas Amigas e meus amigos, faz no dia 29 de Junho 31 anos que editei o meu primeiro livro do qual vos deixo este poema. Obrigada.

21.6.21

Memórias de Isadora X




Recordo os abraços, os desejos, as paixões, 
a luz aprisionada no meu seio, 
o clarão de lume nos meus olhos, 
os temores que não ousava expressar. 

Arredia como um pássaro retornava 
ao que unia e dividia o rasgão das noites 
mais secretas, mais privadas. 

Desprevenida, errei quase todas as paixões. 
Da ilusão colhi cautelosos desencontros. 
E o aceno da esperança. 
E um aviso abandonado sobre o sonho. 
E a furtiva teia dos dias solitários. 

Sei que as dores e os desencantos do amor 
transformaram a minha arte.
Mas nunca refreei o gozo de dançar  
ou vedei dentro de mim o desinibido 
anúncio do cansaço. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 44

14.6.21

Viagem

Ana Pires Livramento

Não importa se na concha da mão 
continuo a proteger os gestos inquietos. 
Sempre criei rumos desacertados para os sonhos. 
Há um tempo restrito para os numerosos 
anseios que queremos eternos. 
Em lugar algum se assinala a aflição do olhar 
quando fugimos do assomo do medo 
com desnorteados passos. 
Talvez uma geografia pessoal revele 
as coordenadas que as nossas sombras 
desenham no vento como ficções 
em que a viagem recomeça 
cada vez mais perto do início de tudo. 

Graça Pires 
In: Acanto: revista de poesia. Leiria: Hora de Ler, 2021, p. 54

7.6.21

Em seara alheia




Aula prática 

Identifica os obstáculos 
todos os obstáculos 

ignora o riso fácil das musas 
quando em fogo 
se acoitam nas bermas e nas praças 

aprende a repugnância das coisas fáceis 
pequeninas insignificantes 
que em nada te acrescentarão 

percorre o teu tempo 
despojado indiferente sereno 

vira o olhar na direção do Sul 
sacode o pó das sandálias 

por fim 
constrói a tua casa 
no outro lado do caminho 
nesse lugar onde ninguém passa

Victor Oliveira Mateus
In: uma casa no outro lado do mundo. Fafe: Labirinto, 2021, p. 16