31.5.21

Leu a notícia no jornal

Andrey Vahrushew 

Leu a notícia no jornal: 
“Menina de nove anos agredida pela mãe”. 
Sabia que era dela que falavam 
e escreveu no seu diário: 
mãe, o que é que aconteceu? 
O sorriso que começava inteiro nos teus olhos 
tornou-se estrangeiro em tua boca. 
Lembro-me do instante 
em que começaste a fitar-me obliquamente, 
como se um cerco te amordaçasse o olhar. 
Depois, sem suspeitares, 
tinhas as mãos vulneráveis à violência. 
O que é que nos aconteceu, mãe? 
Como dizer o teu andar inquieto, ou calar 
o teu rosto cavado por uma qualquer angústia? 
O que é que te aconteceu, mãe? 
De hoje em diante usarei no tornozelo 
uma pulseira negra, em sinal de protesto, 
por me teres privado tão cedo da tua alegria. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 46

24.5.21

Memórias de Isadora IX



Não tenho pressa. 

Em nome do meu nome, 
inscrevo nas paredes 
os gestos indecisos, 
as palavras sombrias, 
os pressentimentos, 
as lágrimas, as gargalhadas, 
a mordedura do desalento 
a marginar a boca. 

Não basta o eco das lembranças 
para disfarçar a solidão. 

Nada ou quase nada se repete. 
Houve pensamentos que magoaram, 
incertezas e renúncias 
que sitiaram as muralhas do tempo. 

Conheço de cor todos os sons do silêncio. 
Com eles me questiono e me respondo.

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020. p. 17


Se desejarem ouvir o poema dito pelo meu filho podem fazê-lo aqui:

                                            https://youtu.be/RiyYpA0Q1no

17.5.21

Memórias de Isadora VIII



Às vezes tinha vontade de fugir, 
de vaguear meus limites, 
de reter aquela harmonia 
que transbordava 
de meu corpo levianamente jovem, 
adolescentemente descuidado e feliz. 

Trazia comigo a inesperada 
melodia da coragem. 

Ninguém fica intacto à transfiguração 
das emoções em fôlego, 
em centelha exótica, em ímpeto, 
criando o fulgor do próprio equívoco. 

E incólume me senti 
da interdição dos sonhos. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 24

10.5.21

Em seara alheia



Caligrafia do mar 

No horizonte o mar é uno 
após o abismo de cada gota 
que se estende na maré alta 
tudo que sobra tem gosto de sal 
genuína alquimia 

desarticulado 
até o vento é meio azul 
quando levanta alguns grãos 
onde a espuma dança 
alargando as ondas descontínuas 

Solange Firmino 
In: Diante das Marés. Belo Horizonte: Caravana Grupo Editorial, 2021

Para adquirir este livro a R$ 29,90, acesse o site da Caravana Grupo Editorial.

2.5.21

Grávida da noite


Alfredo Cunha

Grávida da noite 
soube, desde logo, 
que o filho não iria pertencer-lhe. 
Adoptaram-no. 
Antes de o entregar 
ela lavou-o, demoradamente, 
com as próprias lágrimas. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 13