29.3.12

A vigília do olhar


Uma explosão sobrevoa a vigília do olhar
preso às pontas do vento.
Vejo da minha janela as labaredas da suspeita
galgando as árvores.
Redemoinham pelo chão as fagulhas
que arderam na cor dos gladíolos alaranjados
estremecendo as asas dos pássaros
no interior dos jardins quando, cúmplices,
teceram com seu voo a hesitação do poente.
É a hora em que os morcegos
andam às voltas procurando os ninhos.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

21.3.12

A poesia não morreu

Pedro Pires

A minha impaciência não cabe no poema
ou na pedra afiada pelo silêncio
que me fere os pulsos.
Gravei a sangue o furor dos dias
e deixei rasgar em minha boca
os frutos da sede e do assombro.
Não me venham dizer
que precisamos de profetas
ou de heróis ou de sábios
para o mundo ser salvo.
Nós acreditamos que o brilho das manhãs
se arredonda nas arcadas do tempo
assediando o sonho fraterno dos poetas.
A poesia não morreu.
De memória em memória
ela atravessa as palavras
com a farpa da revolta.
É preciso gritar que a poesia não morreu?

Graça Pires

15.3.12

Nostalgia

Dorothea Lange

Um vento de norte arrefeceu o passado
que nos resta e pôs em perigo a noite
que, desde a meninice, nos seduzia.
Há pássaros esmagados
entre os destroços de um desleixo,
onde, em lençóis de mágoa,
entornámos o vinho com que brindámos
a festa de nascer.
Como estava previsto, nenhum abrigo
nos devolveu o colo materno.
Um diário íntimo marginou os nossos hábitos
e revelou que somos, apenas, aprendizes
de uma esperança manipulada pela dor.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

8.3.12

Elas

Lempicka

Elas têm olhos de vespa como as antigas deusas
e mordem o freio que lhes sangrou os lábios.
Fazem minuciosamente o inventário dos sonhos
esmagados na lembrança.
As paredes das casas com marcas de fumo
guardaram-lhes os gritos quando queimaram
as cartas de amor e o alecrim para afastarem
os fantasmas do passado parados à beira da insónia.
Agora turva-se-lhes a água no quebranto das horas
que a vigilância dos relógios e dos homens
tornam fatigantes.
Às vezes ficam deitadas horas a fio no chão
de cimento afagando o dorso do gato
que febrilmente se enrosca em suas ancas.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

1.3.12

O nevoeiro da espera colado nos sonhos


Desenrola-se em nossos olhos
a vertigem transparente
que agride o declínio do dia
quando a lua se encosta nos vidros
e temos o nevoeiro da espera colado nos sonhos.
Há muito que sabemos como é intocável a luz
do orvalho na raiz da mágoa.
Palavras em estilhaços flutuam sobre os móveis
como fantasmas ou como as fadas
da mais antiga infância.
Respiramos devagar o sopro errante do vento.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011