29.6.25

Se eu fosse uma gaivota


Ana Pires Livramento




Reinicio a infância
no esboço do poema
e circunscrevo o litoral
fragmentado do que sou.

Quem foi que descodificou 
o céu no meu olhar 
e me deixou na alma
um deus imaginado?

Quando o espaço do sonho é circular 
como o tempo das cerejas, 
ou da migração dos pássaros 
que fendem o infinito,
inadiado é o rito da poesia.

Se eu fosse uma gaivota,
dançaria na proa dos veleiros
até à hipnose
de abraçar a maresia.


Graça Pires
De Poemas, 1990, p. 51

                              
Faz hoje 35 anos que editei o meu primeiro livro "Poemas". Este poema é desse livro.


23.6.25

Sem consolo

                        

Katia Chausheva



Não me perguntem
se na vertente da noite
há mães que se deitam
no berço dos filhos
à espera que regressem
de prematuras mortes.
Ou se cantam em uníssono
canções de embalar
na inquieta angústia da demora.
São vozes de deméter
clamando sem consolo
contra os deuses.

Graça Pires
De Talvez haja amoras maduras à entrada da noite, 2025, p. 12

16.6.25

Na senda do cansaço

 

Michael Bilotta




Não vamos sucumbir.
De tão arriscado
este tempo
não tem remissão.
É soluçante a vida
onde nos estranhamos
na senda do cansaço.
Tudo se insinua
como farpas de mágoa
a ferir o mundo.
Não vamos sucumbir.

Graça Pires
De Talvez haja amoras maduras à entrada da noite, 2035, p. 44

9.6.25

Imagem

 



A imagem consente apenas 
que nos doa a mesma dor
daquelas mães que adivinham a morte
pelo cheiro da fome
em bocas que lhe sugam a secura do peito.

A respiração tão vulnerável tão frágil
a tocar o chão de um país com crianças
que têm uma enorme velhice no lugar dos olhos.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023. p. 60

1.6.25

O riso dos meninos

             
                                                                Robert Doisneau




À solta pelo vento
e pela água
o riso desenvolto
dos meninos penetra
o cantar das conchas.
São bandos de aves
na iniciação do voo
com asas de luz
a desprender os barcos
quando amanhece.

Graça Pires
De Talvez haja amoras maduras à entrada da noite, 2025, p. 52

Que desejar ouvir o poema na voz do Pedro pode fazê-lo aqui:
                                                                    
                                                    https://youtu.be/qHzy8n173lQ