25.11.24

Em seara alheia

                           


Olho-te

Olho-te e o outono acontece.
Sonhos que não realizámos...
iluminam o teu olhar.
Sonhos quietos, ideais, paisagens
de um ser pós-Moderno à deriva.
Fragmentação e ilusão que velejam
num mar interno e pesado...
A peste, as guerras, quiçá, a fome
espreitam nas noites em que vagueias.
Os predadores afoitam-se nas esquinas
e as urbes esfriam o bafo do verão.
Olho-te e outono acontece
no teu passo mais lento,
no teu olhar mais terno.
Sonharemos juntos, este inverno!

Ana Tapadas
In: Sul Sereno. Lisboa: Europa Editora, 2024, p. 18

18.11.24

Atraem-me os astros

                                    

NASA



Atraem-me os astros em mutação constante. 
Como um tempo sem limite na espuma do momento, 
a procurar a densidade da luz e das trevas 
onde se extinguem os dias. 
A vibrar na estreita linha da existência, 
leve como a mais leve nuvem. 
Sem tocar a idade do rosto que me pertence.
Um universo quase encenado na dimensão da vida.
Talvez uma chama desarmante entre os lábios 
me deixe ver o princípio de quem sou 
e a cintilação da luz implacável 
presa no equinócio de outono 
a entoar, em pluviosa melodia, 
em aflição cósmica, 
a nítida possibilidade da madrugada em que nasci. 
A agitação da terra e do firmamento 
pode ser a denúncia ou o aviso 
de que o perfume das flores 
me cegará no instante de morrer.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 30

11.11.24

No branco baço dos crisântemos



Um súbito enredo trespassa o olhar 
em descritivas formas. 
A nitidez do silêncio persegue os lábios. 
Decifra as palavras inefáveis. 
Ardor em sangramento na língua. 
Mistura de linfa e de terra 
no branco baço dos crisântemos. 
A tracejar de nostalgia a memória desfocada 
dos lugares no litoral da infância. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p.8

4.11.24

Pouco a pouco

                               

Erin Fetterhoff



Fotografia em negativo.
O inverso das cores.
A imagem da imagem
na impossível inclinação
do brilho sobre o tempo.

Pouco a pouco emudeceram
os nomes ausentes da vida.
Nomes demorados na voz
que perduram na suspeita
do olhar do riso do pranto.

Feridas visíveis na luz.
Flores do luto.
Lugares vazios.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 54