30.9.24

Música

 

Pedro Pires



Convoco o rumor das teclas de um piano
em sonata de beethoven.
E ouço o grito intenso do silêncio
o vento enlouquecido
um inaudível lamento
uma luz no secreto rosto de deus.

É o coração seduzido
pela sublimidade da música.
Como se fora água pura
em diálogo com a terra fecundada.
Como se fora prece
a implorar o valimento da vida.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023. p. 15


23.9.24

Morte


                                                                   Em memória dos que pereceram nos  incêndios



Identificamos de forma evidente
os detalhes secretos
em que os corpos
sangram cinza sobre a terra.

É o eco mudo de um futuro
em queda ou em voo
concha de vento
vidro frangível
corda imperfeita da vida.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 61

16.9.24

Serão de lume as palavras?

             

Susan Derges



A lua cheia incide-me inteira sobre a face.
As margens das páginas incendeiam-se. 
Serão de lume, as palavras?
Em movimento estranho, 
a dosear-se de ritmos, 
a escrita cria seu próprio grito silente.
Na ressonância do silêncio 
apanho-me em flagrante. Ilicitamente. 
Como num pecado original. 
E dentro de mim me escondo, 
indiferente ao deslize de cada hora.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 64

8.9.24

Atrás do vento

 

Katharina Jung



Ainda que não sejam lineares
os caminhos percorridos
já esquecemos aquilo
que em cada etapa
foi tropeço queda
viagem inacabada.

Fincamos os pés sedentários
em avanços e recuos
até que o movimento da vida
nos torna viajantes e aventureiros
sem recear distâncias.

Às vezes corremos atrás do vento
numa espécie de estonteamento
sempre próximos do começo
dos primeiros passos
à procura do lugar onde fica
a casa em que nascemos.

Graça Pires

De O improviso de viver, 2023, p. 62

2.9.24

Em seara alheia




Lembras-te dos tempos azuis
intermináveis e belos?
Inesquecíveis nos corpos
um só momento e o azul
bêbado de nós;
eram tempos de florir
de partir à descoberta
de dizer sim quando foi sim
a palavra de dizer.
Lembras-te dos tempos azuis
no embalo terno e ousado
dos nossos mistérios?
A um passo
da curva acentuada
a estrada desnivela-se
e afunda-se pela montanha.
No malabarismo de viver
estranham-se ausências
revelam-se sombras
desaparece a sonoridade.
Consegui voltar:
incólume.

Paula Banazol de Carvalho
In: A tempo do tempo. - Lisboa: Poética, 2024, p. 16