29.9.25

As marcas da memória

 

Damian Hovhannisyam




Tenho no rosto as marcas da memória 
e debaixo da língua 
todas as palavras maternas 
com que aprendi a nomear a vida.
Coloco uma pedra 
sobre a espada dos momentos 
em que estremece o escasso tempo, 
nesta vida que se desdobra 
em densas sombras 
misturadas no sangue de quem nasce. 
Deslembro a ideia da morte 
e continuo a indagar a dádiva dos dias 
presos à clandestinidade de deus.
Com os dedos atados 
ao fogo-preso da penumbra, 
ondulo o meu nome 
em labaredas cintilantes.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p.78

22.9.25

Em seara alheia

                            

14.


No tempo de ser erva
ofereci-me aos bichos e aos homens
e ensinei-lhes o verde e a frescura.
Depois fui pedra
e dei poiso aos bichos e aos homens
para despirem o cansaço.
Nesse tempo de pedra
aprendi a descida e o prazer de rolar
e ver o céu rolar em minha volta.
Depois experimentei ser água
e lavei as memórias de ser erva e de ser pedra.
Agora respiro fundo ao cheirar a erva acabada de cortar.
Apanho pedras no caminho e acaricio-as.
Guardo nos olhos o ondular das águas de regresso.
Chamam-me mulher.
Ainda me falta ser vento e ser viagem.

Licínia Quitério
In: No sítio das mulheres estremeço e teço e parto: antologia temática. Lisboa: Poética, 2025, p. 24

15.9.25

Perturbada dádiva

 

Laura Makabresku




Acerco-me de mim.
Possuo um rubor adolescente no rosto.
Minhas mãos avaras dos gestos silenciosos
e do desvario da linguagem
fantasiam o amor que hão-de festejar.

É impreciso o espanto cativo no corpo
inclinado sobre a luz vigiando o fogo
em secreta e perturbada dádiva.

Uma fulguração sensível
desfaz o nó da sombra
e purifica o incêndio
que invade a cumplicidade
do olhar carregado de fascínio.


Graça Pires
De O improviso de viver, 2013, p. 37

8.9.25

Tão íntimas as palavras

Iman Maleki



                                           Para a Conceição Lima, a quem tantos poetas devem tanto



Tremendamente obsessivas as palavras.
Permanecem íntimas em sua voz
porque ela lhes ampara a luz.
Porque acende nas sombras
os sinais da melancolia
dos poetas que celebra com amor
em repetido espanto.

Nenhum enigma altera em seu olhar
os poemas que a convocam
para que lhes fulgure
o rosto e o nome o silêncio e o grito.

Tão íntimas.
Tão tremendamente obsessivas.
As palavras.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 36

1.9.25

Existem contornos de liturgia

 



Um súbito silêncio, mais que suspeito, 
encobre a morte das luas 
no olhar daqueles que, pela noite dentro, 
usam a cegueira 
para poderem atravessar as estrelas.
Existem contornos de liturgia 
na perturbada desordem que estilhaça a luz 
em sua inexplicável inclinação.
É escusado torcer as mãos 
junto ao caos que nos circunda 
quando contracenamos com o cosmos 
a hierofania consentida em olhos visionários.
Conheço a atracção dos abismos 
aberta ao mais inquietante silêncio 
e aos sons de uma imensidão desconhecida.
Imagino o jogo estonteante das estrelas cadentes, 
das estrelas que se extinguem, 
das estrelas que nascem, das constelações, 
dos cometas, dos planetas por descobrir.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 31