27.10.25

Em seara alheia

                             


O SONHO ADORMECE LENTAMENTE


O dia esgota-se. O sonho adormece lentamente.
Enquanto os sentidos farejam a exaltação do dia,
há um ranger contínuo que ecoa dentro de mim
como um sussurro cósmico que abafa todos os silêncios.
Neste farejar de sentidos me perco na complexidade das coisas banais.
Entrego-me ao vago e indefinível e deixo que os meus lábios
respirem o húmus da madrugada. Parece que deixei de encontrar beleza
nas neblinas matinais, nos nocturnos e húmidos afagos,
nessas coisas sublimes que não têm peso nem cheiro.
No respirar íntimo e latejante da noite um sonho estremece bruscamente
o sossego nocturno e um suspiro se evade de mim, 
lento como uma gota de água que escorre agonizante na vidraça. 
Talvez uma boca ou uma língua ávida venha sorvê-la, abrir-lhe a névoa, 
sentir o seu sabor e saciar a sede que lhe arde nos lábios.

Albino Santos
In: A complexidade das coisas banais. Viseu: Seda Publicações, 2025, p. 13

13.10.25

Abraçados

 

Sandra Bierman




Tantas vezes nos assusta
o rumor de tragédia
espalhado pelo mundo.
As notícias sufocam-nos
a esperança.
Articulam absurdos
de sangue e de lodo
a desaguar em valetas.
Abraçados choraremos
o luto uns dos outros.

Graça Pires
De Talvez haja amoras maduras à entrada da noite, 2012, p. 25

Um tempo que passou

                       
                                                                    Beatriz Martin Vidal 




Sempre que o silêncio se torna maior
sinto a renitência de certas palavras
em tocar a minha fala.
Recusam o sentido confidente
de desconhecidas emoções.

Querem um tempo que passou.
Aquele em que me desciam
pelos dedos outras águas
sémen e sangue
na junção de rios sem margem
a submergir meu corpo.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p.39

6.10.25

A luz de outubro

    

Rachel Giese



Com silêncio te encobres.
O vento do outono
estremece em tua pele.
As folhas de árvore
com gotas do relento
são fontes antigas
na intuição dos deuses.
Perto do chão
as manchas de sombra
rasgam a terra
em contido murmúrio.
A luz de outubro inteira no olhar!

Graça Pires
De Talvez haja amoras maduras à entrada da noite, 2015, p. 34