5.4.07

Vamos falar de poesia



Arte poética

o poema não tem mais que o som do seu sentido,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,
poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva
fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil
árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura
de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não
se escrevem, lê-se país e mar e céu esquecido e
memória, lê-se silêncio, sim, tantas vezes, poema
lê-se silêncio, lugar que não se diz e que significa,
silêncio do teu olhar de doce menina, silêncio
ao domingo entre as conversas, silêncio
depois de um beijo ou de uma flor desmedida,
silêncio de ti, pai, que morreste em tudo para só
existires nesse poema calado, quem o pode negar?,
que escreves sempre e sempre, em segredo,
dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema não é esta caneta de tinta preta, não é
esta voz, a letra p não é a primeira letra da palavra
poema, o poema é quando eu podia dormir até
tarde nas férias do verão e o sol entrava pela janela,
o poema é onde eu fui feliz e onde eu morri tanto,
o poema é quando eu não conhecia a palavra poema,
quando eu não conhecia a letra p e comia torradas
feitas no lume da cozinha do quintal, o poema é aqui,
quando levanto o olhar do papel e deixo as minhas mãos
tocarem-te, quando sei, sem rimas e sem metáforas,
que te amo, o poema será quando as crianças
e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo
sempre e tudo. o poema sabe, o poema conhece-se
e, a si próprio, nunca se chama poema, a si próprio,
nunca se escreve com p, o poema dentro de si é
perfume e é fumo, é um menino que corre num
pomar para abraçar o seu pai, é a exaustão e a
liberdade sentida, é tudo o que quero aprender
se o que quero aprender é tudo, é o teu olhar
e o que imagino dele, é solidão e arrependimento,
não são bibliotecas a arder de versos contados porque
isso são bibliotecas a arder de versos contados e não é
o poema, não é a raiz de uma palavra que julgamos
conhecer porque só podemos conhecer o que possuímos
e não possuímos nada, não é um torrão de terra
a cantar hinos e a estender muralhas entre os versos
e o mundo, o poema não é a palavra poema porque
a palavra poema é uma palavra, o poema é a carne
salgada por dentro, é um olhar perdido na noite
sobre os telhados na hora em que todos dormem,
é a última lembrança de um afogado,
é um pesadelo, uma angústia, esperança.
o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema
não tem versos, tem sangue, o poema não se escreve
com letras, escreve-se com grãos de areia e beijos,
pétalas e momentos, gritos e incertezas, a letra p
não é a primeira letra da palavra poema, a palavra
poema existe para não ser escrita como eu existo
para não ser escrito, para não ser entendido,
nem sequer por mim próprio, ainda que o meu
sentido esteja em todos os lugares onde sou,
o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,
o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe
porque me olhas, o poema é o teu rosto, eu,
eu não sei escrever a palavra poema, eu, eu só sei
escrever o seu sentido.

José Luís Peixoto
In A criança em ruínas. V.N.Famalicão: Quasi,2002

1 comentário:

João disse...

O poema és tu